segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Apego: a Base que define a nossa relação com o mundo - vídeo da palestra

No último fim de semana estive nesta conferência muito interessante, que teve como orador principal o Dr. Carlos Gonzalez - com as suas intervenções sempre tão pertinentes e bem-humoradas - e que juntou outros oradores e temas também muito interessantes. Esta conferência foi organizada pela doula Cristina Cardigo - do mimami.org - a quem agradeço o convite para estar presente. 
Deixo aqui os vídeos da minha intervenção. 





sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Défice de atenção - crescer sem segurança

Esta semana li mais uma notícia de jornal que falava do número alarmante e que não pára de aumentar de crianças que estão medicadas para o défice de atenção apenas porque não se concentra. Por coincidência conheci também uma dessas crianças durante esta semana, uma criança que, como tantas outras, não tem sequer sinais de hiperactividade mas que, perante a realidade de ter más notas na escola e dificuldades de concentração o médico sugeriu aos pais que fosse medicada para o défice de atenção. Esta criança como tantas outras está medicada desde os 8 anos de idade e diz que nem sequer se sente bem com essa medicação, fica sem energia para brincar, cheia de sono e sem vontade de fazer nada. Claro que fica também sem vontade de se portar mal na escola, ou de falar com os colegas ou de perturbar as aulas. E infelizmente, pelo que dizem os números, estes casos são mesmo cada vez mais comuns por isso precisamos mesmo de falar sobre isto. 

Já expliquei aqui e aqui alguns aspectos importantes sobre esta perturbação mas existem outras coisas que ainda é importante dizer sobre estes casos. 

Em primeiro lugar, é preciso perceber que não há qualquer justificação possível para medicar uma criança apenas porque não consegue ter boas notas ou porque tem dificuldades de concentração. Já falei sobre a questão das notas aqui, por isso não me vou repetir mas é preciso termos noção de que num sistema de ensino que começa a ficar obsoleto e que dá cada vez menos resposta às necessidades das crianças de hoje em dia a preocupação com as notas chega a ser absurda.As crianças têm cada vez menos tempo para correr, para brincar e para ser crianças, por isso é muito natural que também tenham cada vez mais dificuldade em estar sentadas para aprender. 

Depois as crianças dos nossos dias também vivem num mundo em que há cada vez mais estímulos electrónicos e digitais e sabemos que isso também tem consequências na sua capacidade de atenção além de que as novas tecnologias também estão a transformar a forma de nos relacionarmos com o mundo e também de aprender coisas novas e a escola ainda não é capaz de acompanhar bem esta transformação na maior parte dos casos. 

Através dessas tecnologias as crianças também têm acesso a muitas informações e conhecimentos que também transformam os seus interesses e por isso a escola também precisa de acompanhar essas transformações e não é surpreendente que as matérias escolares pareçam hoje um pouco aborrecidas em tantos casos. 

As novas tecnologias têm também a sua responsabilidade na diminuição da capacidade de atenção mas a verdade é que existem outras causas muito mais importantes e que precisamos de conhecer e compreender que podem muito bem estar na base de uma certa epidemia do défice de atenção. 

O que é o défice de atenção
 

Esta é uma perturbação que é uma perturbação que se traduz numa incapacidade de focar ou dirigir a atenção. A nossa mente é invadida por vários estímulos em simultâneo: a cada momento podemos ter noção dos barulhos, dos cheiros, do toque, dos nossos pensamentos, sensações, etc, mas, geralmente, somos capazes de filtrar estes estímulos todos e focar-nos apenas no que interessa ignorando os outros. Nos casos em que existe défice de atenção isso torna-se mais difícil de fazer e a pessoa sente-se constantemente invadida por vários estímulos que não consegue ignorar e que a impedem de focar a sua atenção com eficácia naquilo que quer fazer. Isto dificulta o estudo, o trabalho mas também a vida pessoal porque também pode ser mais difícil estabelecer ligações se não conseguimos dar atenção às pessoas com quem nos relacionamos.

Este défice de atenção pode ou não ser acompanhado de hiperactividade e muitas vezes é confundido com esta apesar de serem coisas diferentes. Podemos dizer que a hiperatividade é a componente motora do défice de atenção e até há estudos que demonstram que esta - que se traduz numa grande agitação motora e numa quase incapacidade de manter o corpo imóvel - pode ser uma estratégia encontrada para ajudar a lidar com o défice de atenção porque parece que as crianças com défice de atenção e hiperactividade se concentram melhor quando lhes é permitido mexerem-se livremente. A hiperactividade é mais frequente nos rapazes do que nas raparigas mas existem muitas crianças, e adultos, com défice de atenção sem nenhuns sintomas de hiperactividade. 

É importante temos noção que esta dificuldade de manter a concentração é sempre maior quanto mais desinteressante for a tarefa que estamos a desempenhar, ou seja, se gostarmos do que estamos a fazer há sempre uma motivação maior para continuar e por isso acabamos por fazer um esforço maior para dirigir a atenção que, na maior parte dos casos que não são muito graves, acaba por resultar. Mas para isso essa motivação tem mesmo de vir de dentro a pessoa tem mesmo de se sentir capaz de retirar algum prazer daquilo que está a fazer para que este esforço possa existir e isso não é nada que ninguém possa forçar alguém a sentir. 

O que está na origem do défice de atenção 

Como já disse nos artigos anteriores, é verdade que hoje em dia pode haver algum abuso no diagnóstico desta perturbação mas também é verdade que parece existir mesmo um aumento dos casos em que realmente existe um défice de atenção. 

Para percebermos porque é que isto acontece é necessário percebermos que os seres humanos nascem com um cérebro muito imaturo. Basta pensarmos que os animais bebés aprendem rapidamente a andar e os seres humanos ainda precisam de vários meses para o fazer, por exemplo, para termos noção dessa imaturidade. Há quem diga que, para nascermos com as mesmas capacidades dos outros animais, precisaríamos de nascer já com um cérebro de dois anos de idade e é fácil de percebermos que uma criança de dois anos de idade jamais passaria pela pélvis de uma fêmea da nossa espécie. Então, a natureza arranjou forma de completarmos esse desenvolvimento cerebral cá fora. Por isso nos primeiros anos de vida o cérebro é constantemente moldado por todas as experiências que encontra no seu meio ambiente. E, como o ser humano é um animal altamente social, as experiências mais marcantes e com mais impacto são justamente as relações que a criança forma com os principais adultos à sua volta. E são essas relações que irão moldar a forma como o seu cérebro vai criando ou perdendo várias ligações neuronais. 

De uma forma muito resumida e simplificada podemos dizer que as crianças nascem com a parte mais primitiva do cérebro relativamente desenvolvida, as partes mais ligadas aos comportamentos instintivos estão presentes e relativamente desenvolvidas à nascença. Do ponto de vista anatómico podemos dizer que a parte mais interior do cérebro, a zona mais ligado aos instintos e às emoções está também relativamente desenvolvida à nascença. A parte que se encontra menos desenvolvida é a parte mais externa e que é justamente a parte que distingue mais os homens dos outros mamíferos e que lhe permite ter um comportamento mais racional, é a zona do córtex cerebral, a chamada massa cinzenta. Nesta parte do cérebro existe uma que é ainda mais importante neste caso que é o chamado cortex orbito pré-frontal. Então é nesta zona do cérebro que se desenvolve essa capacidade de filtrar os estímulos que nos permite manter a concentração e focar a atenção à vontade e há quem lhe chame o controlador aéreo ou o polícia sinaleiro do cérebro, por causa desta função de seleccionar a informação relevante em cada momento. É por causa desta zona do cérebro que há quem diga que o café ou outros estimulantes podem ajudar a minimizar o défice de atenção: ao contrário do que já ouvi dizer, o café não acalma, aquilo que o café faz nestes casos é justamente acordar esse polícia sinaleiro para que ele possa fazer mais facilmente o seu trabalho, estimula essa zona do cérebro (juntamente com tantas outras) que ajuda a fazer mais facilmente essa filtragem e por isso pode melhorar temporariamente a capacidade de concentração. 

Mas o mais importante é percebermos que esta zona do cérebro só se desenvolve se encontrar as condições ideais para o fazer. Na verdade esta é uma função que, em termos de sobrevivência, não tem um grande valor por isso a natureza só irá desenvolvê-la se todas as outras mais importantes tiverem sido desenvolvidas primeiro. Hoje sabemos que o nosso organismo é sábio na distribuição dos seus recursos e se o meio ambiente em que vive não for o ideal esses recursos serão gastos apenas naquilo que for estritamente necessário. E o meio ambiente ideal para uma criança nos primeiros anos de vida é um ambiente de segurança e de acolhimento. E essa segurança implica crescer com os pais ou as pessoas mais importantes na sua vida presentes e disponíveis a maior parte do tempo, coisa que, infelizmente hoje em dia nem sempre acontece. Nunca na história da humanidade tivemos tantas crianças a crescer sem essa possibilidade de terem um adulto presente e disponível para si durante a maior parte do tempo. Nas creches com várias crianças ao cuidado de um adulto é muito difícil que a criança se sinta suficientemente segura nessa ligação com o adulto. 

Depois, por outro lado, os pais também têm cada vez mais desafios e cada vez menos tempo para estar verdadeiramente com os filhos, para os poderem acolher de verdade. Na realidade existem muitos adultos também com défice de atenção e um adulto com défice de atenção também terá mais dificuldade em estar verdadeiramente presente com os filhos, daí a tendência para pensarmos que existe uma carga hereditária. Existe, sim, mas ela não tem nada a ver com os genes e sim com o facto de que um adulto com défice de atenção será provavelmente um adulto um pouco mais ansioso e também ele com alguma história de abandono emocional e sabemos que, a menos que os pais parem para pensar e compreender a sua história, as probabilidades de repetirem o que já foi feito com eles pelos seus próprios pais são elevadíssimas. 

Este défice de atenção vem muitas vezes acompanhado de alguma ansiedade que, também ela está quase sempre ligada a um ambiente inseguro na infância. A ansiedade é muito comum naquilo a que se chamam os casos de apego ambivalente - situações em que a criança não sentia que havia um adulto capaz de a ajudar a lidar com os sentimentos mais difíceis - que, infelizmente, é um tipo de apego relativamente comum nos nossos dias. 

Então aquilo que mais precisamos de entender sempre que vemos uma criança ou adulto com défice de atenção é que essa foi uma pessoa que não cresceu nas condições ideais. E aquilo que precisamos de fazer, mais do que tentar corrigir esse défice através de químicos que têm efeitos secundários que podem ser devastadores sobretudo nos mais novos, é perceber que essa criança, antes de qualquer outra coisa precisa de se sentir segura. Hoje sabemos que o nosso cérebro mantém alguma plasticidade, ou seja, mantém a capacidade de se alterar em função das suas experiências. Então, é verdade que os primeiros anos são muito importantes na formação cerebral e são os anos em que é mais fácil moldar o cérebro e conseguir efeitos duradouros mas também é verdade que é sempre possível alterá-lo em qualquer altura da vida. 

Os estudos na área do mindfulness, por exemplo, mostram que é possível alterar a própria estrutura cerebral apenas por aprendermos a direccionar a nossa atenção de modo mais consciente. E também  já existem estudos que mostram que os relacionamentos também podem alterar o funcionamento do nosso cérebro. 

Na verdade, para o ser humano, as relações próximas são sempre a fonte mais eficaz de transformação. Somos animais sociais, as relações humanas são o centro das nossas vidas, por muito que nos esqueçamos disso. Ninguém vive bem sozinho - o sentimento de solidão pode aumentar até 50% as probabilidades de se vir a ter um ataque cardíaco - não é por acaso que a morte, a perda de alguém importante, é das experiências mais dolorosas para qualquer pessoa. Então, o nosso cérebro está sempre programado para responder e reagir a essas relações e para se moldar em função delas. 
Então o que é urgente em primeiro lugar é percebermos como é que podemos criar mais segurança nas nossas crianças, como é que podemos lidar com essa epidemia de ansiedade e com os estados de alerta que a acompanham de forma tão presente nos nossos dias. E a única forma de o fazermos é encontrarmos maneira de estarmos verdadeiramente presentes com os nossos filhos, sobretudo nos seus primeiros anos de vida, não apenas em qualidade mas em quantidade também. Precisamos de reformular todas as nossas prioridades e de perceber que não podemos ter tudo e que não há outra forma de construir um mundo melhor e uma sociedade mais saudável e equilibrada a não ser dar aos nossos filhos aquilo de que eles precisam desesperadamente para crescerem bem: a nossa presença, de corpo e mente, de forma estável, previsível e segura.