sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Crianças que mordem

Já escrevi aqui sobre as crianças que batem e sobre como isso é uma fase normal do desenvolvimento. Mas ultimamente tenho pensado mais nas crianças que mordem, provavelmente porque tenho um mordedorzinho com pouco mais de um ano, uma boca cheia de dentes e mandíbulas de pit-bull. Não vale a pena explicar outra vez as razões pelas quais as crianças mordem porque, regra geral, são as mesmas que as levam a bater e estão já explicadas neste texto. Então, resumidamente, podemos dizer que as crianças mordem, da mesma maneira que batem, quando se sentem frustradas, cansadas ou contrariadas. Pode haver casos em que morder é também uma forma de chamar a atenção de outras crianças, por exemplo, ou apenas uma forma de aliviar a tensão das gengivas quando os dentes nascem ou até uma forma de brincadeira mas não costumam ser esses os casos que preocupam mais os pais porque é fácil de perceber que, nessas situações, a criança não o fez com más intenções.

O que preocupa mais os pais são aquelas dentadas que vêm mesmo da frustração e em que se percebe que a criança ficou aborrecida ou zangada com algo, até porque, geralmente nesses casos elas também acabam por ser mais fortes. E a verdade é que se o bater preocupa muita gente as dentadas ainda mais porque costumam fazer mais estragos e muitas vezes deixam marcas. Se apanhar uma palmada de uma criança de 1 ou 2 anos pode ser desconcertante, a verdade é que esta incomoda mais pela preocupação com o acto em si do que pelo estrago que faz em quem a apanha, mas as dentadas podem magoar mesmo e até fazer sangue ou deixar nódoas negras. Por isso os pais ficam preocupados com a criança que mordeu mas também com quem foi mordido que, se for outra criança, muitas vezes, acaba mesmo a chorar.

Então o mais importante, em primeiro lugar, é lembrarmos-nos que as crianças não vêem o mundo pelos nossos olhos. As crianças mais pequenas, para além de não terem os chamados sentimentos mistos, como expliquei aqui, também não têm de forma desenvolvida aquilo a que se chama a teoria da mente. Isto é o que nos dá a capacidade de perceber que os outros vêem as coisas e pensam de uma maneira diferente da nossa. Só a partir dos 4 anos de idade é que uma criança começa a ser capaz de entender que existem outros pontos de vista e que as pessoas podem ver o mundo de uma perspectiva muito diferente. Apesar de geralmente começar a haver alguns sinais de que se está a desenvolver esta capacidade a partir do primeiro ano de idade, só a partir dos 4 anos é que a criança começa mesmo a ser capaz de perceber que os outros podem não ver o mesmo que ela e, na verdade, ainda serão precisos vários anos para esta capacidade estar mesmo bem desenvolvida, até sermos capazes de entender que as outras pessoas podem ter motivações e sentimentos muito diferentes dos nossos nas várias situações e, na verdade, nem sempre os próprios adultos têm esta capacidade.

Então, isto quer dizer que uma criança que se zanga e morde outra ou nos pais está apenas a fazer isto por instinto, não porque sabe que o pai ou a outra criança vão ficar magoados. Por vezes as crianças depois de morder ficam mesmo espantadas com a reacção do outro, quando esta é mais intensa, porque não percebem realmente que magoaram.

Além disso, morder, tal como bater em momentos de tensão ou frustração é um comportamento automático fruto de uma alteração fisiológica que também expliquei aqui, por isso se ralharmos ou reprimirmos fortemente esse comportamento só iremos criar mais tensão que, também ela, terá de ser libertada de alguma forma.

Então o que podemos fazer quando temos crianças que mordem com muita frequência?

Primeiro precisamos de perceber o que é que originou essa reacção por parte da criança. Por vezes os pais dizem que a criança não estava zangada quando mordeu, então aqui, é preciso perceber se a criança mordeu apenas como forma de brincadeira ou se mordeu para chamar a atenção da outra criança ou se mordeu mesmo para libertar alguma tensão que ao adulto possa ter passado despercebida.

É importante tentarmos perceber as alturas em que a criança costuma morder e as razões pelas quais o faz para podermos evitar que o faça, sobretudo quando está com outras crianças a quem pode magoar. Assim se percebermos que uma criança pode estar prestes a morder outra podemos mais facilmente intervir afastando-a da outra criança ou procurando, sempre que possível, minimizar a fonte de tensão para ela.

Depois, quando não conseguimos mesmo evitar e a mordidela já aconteceu, é importante que nos lembremos que a criança não o fez com más intenções e saber que não adianta ralhar, nem castigar e muito menos envergonhar a criança, porque isso só irá criar mais tensão. O que podemos fazer, nos casos em que outra criança foi magoada, é chamar a atenção para esse facto e mostrar à criança que o outro ficou triste. Apenas como forma de ir chamando a atenção para os sentimentos dos outros mas sem esperarmos que uma criança de um ano ou dois compreenda verdadeiramente isto e sem lhe incutirmos uma atitude pesada e de culpa pelo facto do outro estar a triste ou magoado. Os pedidos de desculpas forçados não têm grande utilidade como já expliquei aqui.

Depois é importante também fazer alguma coisa com a criança que foi magoada sobretudo quando ela é um pouco mais crescida e se os pais não estiverem presentes - se os pais estiverem presentes serão sempre eles as pessoas mais indicadas para confortar a criança caso ela tenha ficado perturbada. Mas, se a criança já tiver idade suficiente para compreender, então, depois dos pais a confortarem também é importante que sejamos capazes de criar empatia com ela e de mostrar que compreendemos e reconhecemos os seus sentimentos. Muitas vezes o que dói mais não é tanto a dentada mesmo mas o sentir-se agredida pelo outro, então aqui é importante explicar que o outro que mordeu não o fez por mal e que ainda não percebe que está a magoar. Às vezes caímos na tentação de ralhar ou castigar a criança que mordeu apenas para que o outro veja que estamos do lado dele ou que reconhecemos a sua dor, às vezes os pais da criança que foi mordida quase exigem isso aos pais do que mordeu. Então, nestes casos, o mais importante é perceber que podemos mostrar à criança que foi mordida que nos importamos com ela mesmo sem castigar ou ralhar com a outra. Basta que nos foquemos nos sentimentos de quem levou a dentada e que sejamos capazes de mostrar que os reconhecemos e acolhemos. E por vezes temos de ser empáticos também com os pais que viram o filho a ser mordido e acabam também por, de certa forma, se sentirem eles próprios agredidos. Mas essa empatia não significa que precisemos de mudar nada na forma como achamos certo educar os nossos filhos. Precisamos de saber que, nestes casos, não ralhar ou não castigar não é ser permissivo é apenas compreender que essas atitudes não servem para impedir a criança de voltar a fazê-lo, acabam por criar mais tensão e frustração na criança e não têm mesmo nenhuma utilidade pedagógica.

E quando somos nós, os pais, o alvo da mordidela?

Por vezes pode haver uma reacção instintiva de dar uma palmada a uma criança que morde. Se isso acontecer podemos reconhecer que foi apenas o instinto que entrou em acção quando nos sentimos atacados e nem sempre é fácil controlar esse impulso mas é importante sabermos que esse instinto não é a forma mais certa de resolver a situação. Nestes casos podemos simplesmente afastar a boca da criança de nós e dar-lhe espaço para que ela manifeste a sua frustração de outro modo, esperneando, gritando, chorando, nos casos em que isso for necessário. É muito importante que sejamos capazes de por de lado a parte de nós que se sentiu agredida, ofendida ou ameaçada por aquela dentada e saber que isso não faz do nosso filho uma má criança ou má pessoa, nem que ele não gosta de nós e lembrarmos-nos que é apenas uma reacção instintiva, natural e que irá desaparecendo com o tempo.

E quando isto acontece na escola?

Muitas crianças mordem aos coleguinhas na creche. Aqui é preciso, em primeiro lugar, termos noção de que não há nada de natural em termos uma sala cheia de crianças da mesma idade, todas na mesma fase de desenvolvimento, com necessidades muito semelhantes e poucos adultos que as ajudem a preenchê-las. Então é praticamente impossível que este ambiente não gere tensões. Como em tudo na vida há crianças que são mais ou menos sensíveis a essas tensões e há também crianças que são mais ou menos reactivas. Então uma criança que morde nestes contextos precisa de ser observada com alguma atenção, de modo a percebermos se há alguma forma de evitar a mordidela antes dela acontecer. Quando ela já aconteceu, tudo o resto se aplica também: é preciso criar empatia com a criança que chora e perceber que a criança que mordeu o fez apenas como uma espécie de descarga de tensão, não com maldade ou intenção de magoar, porque uma criança pequena simplesmente ainda não consegue ver as coisas desse modo.

Quanto mais formos capazes de acolher as tensões, com mordidas ou batidas ou não, das nossas crianças mais facilmente também elas serão capazes de aprender a transformá-las e a lidar com elas de forma mais positiva. Mas para isso a criança precisa de um modelo já que só lhes será possível aprenderem a fazê-lo se os adultos à sua volta também forem capazes de lidar com as suas emoções de uma forma mais construtiva e não se limitarem a explodir também com as frustrações do dia-a-dia. E precisam também sobretudo de sentir que as suas emoções podem ser acolhidas e recebidas pelos seus pais, por muito intensas que sejam, pois só assim podem crescer sem ter medo de si próprias e daquilo que podem sentir. E precisam também da ajuda dos pais para aprender a regular essas emoções difíceis e intensas e para perceberem que elas podem acabar por se transformar noutras mais fáceis de acolher, porque sem essa ajuda dos pais que precisam de servir de modelo nesse processo de transformação das emoções, todas as crianças ficam perdidas e desorientadas quando sentem emoções mais intensas. Essa ajuda pode passar por pegar ao colo uma criança que chora, por lhe dar um abraço ou simplesmente por ficar ao pé dela, mostrando que não temos medo daquela emoção e que é possível ficar ali, presente, enquanto ela a manifesta. O contacto físico, sobretudo com crianças mais pequenas, é uma forma muito eficaz de diminuir a activação fisiológica e de ajudar a criança a lidar com as emoções difíceis e a transformá-las mas, para isso, é preciso que a criança aceite esse contacto, não adianta abraçar à força uma criança que chora e esperneia porque aí ela irá sentir esse abraço apenas como uma espécie de prisão, vai sentir que a estão a conter à força. Então, se a criança não está ainda pronta para aceitar o nosso colo ou abraço é preciso esperar um pouco, ficando simplesmente ali e mostrando que estamos disponíveis e prontos para a abraçar ou pegar ao colo quando ela nos der um sinal de que já irá aceitá-lo.

E depois, como em tantas outras coisas, é preciso que sejamos capazes de confiar nos nossos filhos, saber que estes comportamentos mais agressivos não são nenhuma prova da sua má formação ou má natureza, são apenas prova que os seus instintos estão a funcionar e de que temos que ser capazes de esperar que a natureza vá fazendo o seu trabalho. Para que uma criança aprenda a controlar os seus impulsos - algo que até os adultos, por vezes, têm dificuldade de fazer - é preciso que se desenvolvam algumas partes do cérebro que servem para controlar as zonas que estão mais ligadas aos instintos e à emoção. Essa zona, o cortéx pré-frontal começa a ser desenvolvido na infância mas só completa o seu desenvolvimento por volta dos 25 anos de vida, se encontrar as condições certas para isso. Porque, em muitos casos, na verdade este desenvolvimento nem chega a ser completo. Então para este desenvolvimento acontecer de forma harmoniosa é preciso que a criança viva num ambiente que lhe permita fazê-lo, isso significa que ela precisa de se sentir segura, acolhida e protegida pelos seus pais e pelos adultos importantes na sua vida.

Sabemos cada vez mais que quando as crianças são sujeitas a estados de tensão ou stress durante demasiado tempo, sobretudo nos primeiros anos de vida, estes estados acabam por inibir o desenvolvimento de algumas áreas do cérebro, como o cortéx pre-frontal. E também sabemos que isto poderá estar na base de vários perturbações de comportamento ou de desenvolvimento, como por por exemplo o défice de atenção e a hiperactividade de que tanto de fala hoje em dia, como já expliquei aqui. Só através deste desenvolvimento é que a criança pode aprender realmente a controlar os seus impulsos em situações de stress, porque é esta zona do cérebro que lhe permite ter algum controlo sobre as partes mais primitivas. Então, precisamos de confiar nos nossos filhos, saber que a natureza está a fazer o seu trabalho mas que esse trabalho é lento e que para a ajudarmos da melhor forma possível tudo o que precisamos de fazer é criar um ambiente de amor e de segurança.


sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Crescer com o coração macio

A entrada na escola é um tema sobre o qual já falei aqui e aqui mas é também um tema que, sobretudo nesta altura do ano, gera sempre muitas questões, dúvidas ansiedades e também alguns mal entendidos.

Por isso e depois de ver este pequeno vídeo do psicólogo canadiano Gordon Neufeld, fiquei com vontade de falar sobre algumas das questões que acredito estarem na origem destes mal-entendidos quando falamos de crianças pequenas e da entrada na escola.

A idade da criança e a adaptação à escola

Muitas pessoas defendem que será melhor a criança entrar na creche mais cedo porque assim se habitua mais facilmente. Até poderá ser verdade que um bebé se habitua mais depressa à creche do que uma criança de 3 ou 4 anos, até porque ainda não tem tanta noção das rotinas e ainda não criou   muitos hábitos, mas isto não quer dizer que isso seja o melhor para a criança. Somos capazes de nos habituar a muitas coisas que não são necessariamente boas para nós. Uma criança pequena precisa de criar ligações seguras acima de tudo e, para que as ligações sejam seguras, é necessário que a criança sinta que as suas necessidades são respeitadas e atendidas e, nos primeiros tempos de vida, essas necessidades passam muito pelo contacto físico frequente e pela resposta rápida ao choro. Numa sala onde podem existir 7 ou 8 bebés com as mesmas necessidades e apenas duas pessoas adultas, é claro que nem sempre será possível dar-lhes essa resposta de que precisam. ´

É verdade que os bebés até podem chorar menos quando ficam na creche do que uma criança de 3 ou 4 anos mas isto não quer dizer que isso seja bom para eles. Na verdade, algo que costuma baralhar um pouco os pais, sobretudo nos primeiros dias de creche, é o facto dos bebés ou crianças pequenas, ficarem aparentemente bem quando são deixados e começarem a chorar assim que os pais os vão buscar, e chorarem mesmo muito por vezes ao colo dos pais, apesar das educadoras garantirem que eles estiveram bem-dispostos e sem choro o dia inteiro. Isto acontece porque as crianças não se sentiam suficientemente seguras para chorar na presença da educadora - ou porque ainda não a conhecem bem nem o sítio onde estão, ou simplesmente porque existem demasiados meninos para que possa ser criada uma relação de confiança ou porque a educadora não lê os sinais da criança e não lhes dá uma resposta suficiente para que esta se sinta segura. Então, assim que os pais chegam, a criança volta a sentir-se segura e pode descarregar toda aquela tensão que tinha guardado. Isto significa que, mesmo sem chorar, ela esteve o dia todo em alerta e tensa, sem se sentir segura e protegida o suficiente para poder protestar. Mesmo os bebés mais pequenos são capazes de guardar esta tensão sem a manifestar quando não se sentem seguros, é exactamente isto que acontece também quando os bebés são deixados a chorar para aprenderem a dormir sozinhos: existem estudos que mostram que os seus níveis de cortisol - uma hormona cuja quantidade aumenta em situações de stress ou ansiedade - continua com níveis elevados mesmo quando eles já deixaram de manifestar o seu desconforto. Porque protestar sem ser ouvido ou atendido é algo que consome muita energia e coloca a criança ou o bebé numa posição vulnerável. O choro é algo que desregula as funções do organismo, que deixa a criança num estado de alerta que leva a um estado de sobre-activação que consome muita energia e altera mesmo algumas funções no seu organismo e os bebés e as crianças pequenas têm muita dificuldade em regular os seus estados sem a ajuda dos adultos a quem estão ligados. Por isso os bebés aprendem rapidamente quando é que chorar não serve para nada porque não há nenhum adulto por perto que os possa ajudar a regular os seus estados e, nestes casos, o seu instinto faz com que passem a suprimir esta resposta que, quando se sentem seguros, surge naturalmente de uma forma espontânea.
Este choro acontece com muita frequência, quando os pais os vão buscar depois de um dia inteiro na creche, mesmo com crianças um pouco mais velhinhas e mostra que, apesar da criança ter estado o dia inteiro sem chorar, esteve a acumular alguma tensão que precisa de ser descarregada com as pessoas com quem ela se sente segura. Então isto mostra claramente que a criança sente que o ambiente da creche não é seguro o suficiente e que passar lá o dia inteiro representa claramente um desafio e uma situação de tensão para si. Isto acontece por muito boas que sejam as creches e por muito bem intencionadas que sejam as pessoas que lá trabalham porque uma criança pequena precisa mesmo de uma relação muito mais individualizada do que aquela que é possível nestes locais.
Na verdade, este choro até nem é o pior sinal. É sinal de que, apesar de tudo, a criança ainda se sente segura com os pais e ainda procura o seu conforto e a sua ajuda para libertar essa tensão. Mais graves são os casos em que a criança quase fica indiferente à chegada dos pais e continua a brincar como se eles nem estivessem ali. Isto pode significar que a criança já acumulou tanta tensão e que já lhe foi tão difícil estar sem eles o dia inteiro que acabou por precisar de se desligar desses sentimentos e dessa parte de si que lhe diz que deveria procurar a segurança da ligação com os pais.

A questão do choro 

Outra coisa importante de que Neufeld fala e para a qual chama a atenção é a quantidade de vezes com que confundimos o facto de uma criança não chorar com algo de bom para si ou para o seu desenvolvimento quando, na verdade, isto pode ser mesmo muito mau sinal. Este autor trabalhou muitos anos com jovens e crianças delinquentes e faz sempre questão de frisar que, uma das marcas dessas crianças ou jovens, é justamente a incapacidade de chorar quando alguma coisa de mal acontece.

O choro é uma resposta natural e relativamente rápida quando a criança está em contacto com as suas emoções e se sente frustrada com alguma coisa. É importante sermos capazes de acolher esse choro e até de reconhecer a sua importância, porque mostra que a criança confia em nós o suficiente para se expressar e para demonstrar o que está a sentir. Uma criança pequena que não chora nunca é uma criança que já aprendeu a defender-se dos seus sentimentos, já aprendeu que é preferível não mostrar o que sente e não deixar que as suas emoções ocorram espontaneamente, porque não tem a certeza de ter alguém que a ajude a lidar com elas quando estas se tornam demasiado intensas. Quando uma criança chora, se ninguém a ajudar a lidar com o que sente ou se a criança já se sentia assoberbada por outros motivos, por exemplo se está cansada, com sono ou com fome, é muito fácil que a criança entre num estado de descontrolo emocional e fisiológico. E esse descontrolo é muito duro de sentir além de que os instintos de preservação da criança a fazem sentir que o deve evitar, pelas consequências nocivas que poderá ter. Então, se a criança nunca tem ajuda para lidar com as suas emoções mais difíceis, para evitar esse descontrolo, ela vai aprender a ignorar o mais possível essas emoções e por isso deixa de as expressar.

Então quando pensamos que, para uma criança de 3 ou 4 anos que está a começar a escola aquilo que lhe estamos a pedir, na verdade, não é nada natural, o mais saudável até é mesmo que ela chore e proteste e mostre o seu desconforto, pelo menos algumas vezes, durante o processo de adaptação. Se a criança for mais velha, se já conhece bem a escola ou o educador isto é facilitado e esses protestos podem ser mais reduzidos. Mas, a verdade, é que uma criança pequena tem um instinto que lhe diz que deve procurar ficar perto daqueles a quem se sente ligada, com quem se sente segura e em sítios que já conhece. Muitas vezes se diz que devemos ensinar as crianças a não falar com estranhos mas uma criança saudável não fala assim tão facilmente com estranhos. Uma criança saudável sabe que o seu instinto lhe diz que deve ficar perto dos seus pais ou das pessoas a quem se sente ligada. Claro que existem crianças mais extrovertidas e outras mais introvertidas mas, a verdade, é que o mais natural para uma criança de 2 ou 3 anos é mesmo que o seu primeiro instinto seja o de não querer falar com estranhos. Então é ainda mais natural que esta também não queira ser deixada aos cuidados de estranhos, ainda por cima num sítio estranho e o dia todo. Por isso os protestos e até o choro são naturais nestes casos. O que podemos e devemos fazer será ajudar a criança a lidar com esse choro e tentar perceber se ele faz apenas parte da adaptação ou se é sinal de um sofrimento mais profundo que pode mostrar que a criança não estará mesmo preparada para ficar naquela escola.

Quando o meu filho entrou para o jardim infantil, aos 3 anos, chorou um pouco algumas vezes e o que fazíamos era ficar com ele na sala, ajudando-o a familiarizar-se com o sítio e com as pessoas até que ele se sentisse um pouquinho mais confortável e parasse de chorar. É muito importante que sejam os pais a fazer esta transição porque são eles as pessoas com quem a criança se sente segura, por isso é com eles que ela deve aprender a conhecer o espaço e as pessoas para que depois possa sentir-se segura também com essas pessoas. Os pais precisam de fazer uma espécie de transferência do apego e precisam de confiar também nas pessoas e mostrar aos filhos que também eles podem confiar naquelas pessoas novas. Uma imagem marcante desta adaptação do meu filho à escola foi quando, numa dessas primeiras vezes em que ele chorou um pouco, uma auxiliar veio e perguntou-me se lhe podia pegar ao colo, eu acedi e vi que ele se agarrou ao pescoço dela, deixando ainda cair umas lágrimas ao mesmo tempo que a abraçava em busca de conforto. Nesse momento percebi que ele já confiava nela, que a ligação estava criada e que, a partir daí, tudo seria mais fácil. Pouco depois, saí da sala e ele veio dizer-me adeus da janela, ainda ao colo dela, mas já sem choro nenhum e com um ar muito mais tranquilo. Então é mesmo importante que sejamos capazes de dar tempo à criança para que esta ligação se estabeleça, mesmo com algum choro à mistura, porque só assim é que ela poderá ganhar a segurança necessária para começar a sentir-se minimamente confortável nessa nova rotina.

O equívoco da socialização 

Outra questão muito importante, que também é mencionada no vídeo e que também dá origem a muitos mal entendidos é a da socialização. Tal como diz Neufeld, é verdade que as crianças se podem tornar mais sociáveis quando vão para a creche e passam o dia com outras crianças. O que acontece nestes casos é que as crianças que estão habituadas a estar todo o dia com outras podem mostrar uma maior facilidade na interacção com os pares e um à vontade maior que pode ser facilmente confundido com segurança. Mas, na verdade, na maioria destes casos estas crianças ficam muito à vontade com as outras crianças mas acabam por ficar mais afastadas dos adultos.

Quando o meu filho entrou na escola, lembro-me que não estava muito habituado a estar com outros miúdos e por isso os adultos eram a sua referência, era a estes que procurava a maior parte do tempo e mostrava mais interesse em estabelecer relações e em falar e comunicar com eles do que com as outras crianças. Mas a verdade é que isto acabava por vezes por ser confundido com alguma insegurança, porque temos essa tendência para achar que é positivo as crianças serem capazes de brincar espontaneamente umas com as outras sem procurar os adultos, mas isso não é verdade.

Uma criança de 2, 3 ou 4 anos que chega a um sítio onde não conhece ninguém e que quer ficar perto dos pais é muitas vezes rotulada de tímida ou insegura quando tudo o que essa criança está a demonstrar é que ainda não desligou essa parte do instinto que lhe diz que deve procurar manter-se perto das pessoas com quem tem uma ligação de apego segura. Então precisamos mesmo de começar a distinguir o que é uma timidez natural e que serve apenas o instinto da criança da verdadeira insegurança.

Em situações sociais há muitas vezes a tendência de colocar as crianças em grupo, esperando que brinquem umas com as outras e que fiquem afastadas dos adultos mas, para uma criança segura, é bom que os adultos ainda sejam uma referência e é bom que elas sintam vontade de estar perto dos adultos e de participarem no seu mundo em vez de ficarem apenas isoladas com as outras crianças. 

Todas as crianças têm um instinto que lhes diz que devem procurar estabelecer ligações seguras com os adultos mais importantes ou mais presentes nas suas vidas. Mas, para isso acontecer é preciso que esses adultos estejam disponíveis, presentes e que tenham verdadeiramente vontade e possibilidade de estar com essa criança, de lhe dar atenção e de passar tempo com ela. Quanto mais pequena for a criança maior terá de ser esse tempo que passam com ela e mais exclusiva precisa de ser a atenção que lhe dedicam. Então, numa escola com muitas crianças numa sala, nem sempre é possível que os adultos estabeleçam essa ligação com cada uma das crianças que têm ao seu cuidado. E, quando a criança não encontra nenhum adulto disponível para construir uma ligação segura, volta-se para as outras crianças. Acontece que as outras crianças não podem ser uma base de segurança tão grande como um adulto, porque não são capazes de a ajudar a lidar bom com as suas emoções e porque são muito mais centradas em si mesmas e capazes de se magoar umas às outras com muito mais facilidade. Então isto quer dizer que as crianças que estão demasiado voltadas para os pares acabam por precisar de se proteger muito mais das suas emoções e por isso precisam se ficar mais afastadas daquilo que sentem e de o demonstrar menos. Mas, nestes casos, as crianças também ficam mais ansiosas porque sabem que não têm todo o apoio de que necessitam para se poderem sentir verdadeiramente seguras.

E aqui estão criadas as bases para muitos dos problemas de indisciplina de que tanto se falam hoje em dia nas escolas. Porque quando os adultos deixam de ser uma referência eles também deixam de ser modelos e as crianças ou jovens deixam de querer agradar-lhes, o mais importante passa a ser agradar aos pares e assim os adultos perdem uma grande capacidade de as influenciar ou de educar. Além disso, se uma criança precisa de estar mais protegida e mais distanciada das suas próprias emoções também passa a ser mais difícil chegar ao seu coração e estabelecer uma ligação com ela. E porque só podemos educar aqueles que, de algum modo, se sentem ligados a nós, então fica mesmo difícil conseguir orientar estas crianças que perderam essa ligação connosco e todo o trabalho dos adultos fica cada vez mais dificultado porque estas crianças passam a querer agradar, em primeiro lugar, aos seus pares e não aos adultos. 

Por vezes os pais pensam que precisam de proteger os filhos do mundo que, por vezes é cruel, e por isso precisam de permitir que elas fiquem como que endurecidas e assim será bom que não chorem por tudo e por nada. Mas isto acontece apenas porque eles próprios se sentem feridos e magoados e aprenderam a não confiar no que sentem e a não se deixarem ficar vulneráveis porque, no fundo, sentem que não podem confiar verdadeiramente nos outros. Mas esta não é de todo a forma de criar crianças mais felizes. Uma criança feliz é uma criança a quem é permitido confiar em si própria e nos outros, porque uma criança que aprende que não pode confiar nos outros, também aprende que não pode confiar nos seus instintos e nos seus próprios sentimentos. Para criar crianças felizes precisamos de lhes permitir que cresçam com aquilo a que Neufeld chama um coração macio: um coração de alguém que sabe que pode ligar-se aos outros e que pode confiar e entregar-se à construção de ligações seguras. Para isso precisamos de as ensinar que podem confiar em nós, em primeiro lugar e depois em si próprias, na vida e nas pessoas que as rodeiam. 

Lembro-me que, quando o meu filho mais velho era bebé houve alguém que me perguntou se eu não tinha medo que ele sentisse demasiado a minha falta quando, um dia precisasse de o deixar com alguém. Essa pessoa julgava que era preciso habituar os filhos, logo desde bebés, a estarem com outras pessoas para não sentirem tanto a falta das mães e é muitas vezes esta também a lógica de quem acha que é melhor irem mais cedo para a creche. Mas a verdade é que há estudos que mostram que, até mesmo nos casos trágicos em que as crianças perdem uma mãe ou um pai, é muito mais fácil lidar com essa perda se a ligação que tinham com ele era segura. Porque uma criança que estabelece uma ligação segura com alguém é uma criança que cresce a sentir-se amada, respeitada e protegida e isso faz com que seja capaz de lidar com todas as emoções, até mesmo a emoção mais difícil de perder uma das suas figuras de referência.

Então isto quer dizer que uma criança que cresceu com esta segurança de sentir amada e respeitada, e que aprendeu a lidar com as suas emoções terá também muito mais ferramentas para lidar com a entrada na escola, por muito ameaçadora que esta lhe possa parecer, do que uma criança que nunca teve oportunidade de aprender a lidar com os desafios desse modo. Por isso uma criança de 3 ou 4 anos que chora quando entra na escola não é necessariamente uma criança insegura ou frágil mas sim uma criança que ainda tem a capacidade de demonstrar aquilo que está a sentir e que ainda acredita que vale a pena procurar os adultos para lidar com as suas emoções.

Então precisamos mesmo de perceber que devemos preocupar-nos é com aquelas crianças que não choram nunca e que já não procuram os adultos mesmo nas situações mais difíceis. Precisamos de saber que não há maior dor do que aprendermos logo desde pequeninos a suprimir as emoções e a fechar o coração a partes de nós que aprendemos a deixar escondidas, porque isso faz-nos crescer com a sensação de que existe algo defeituoso dentro de nós, ou algo perigoso em que não podemos tocar. E a única forma de sermos verdadeiramente felizes é sendo capazes de abraçar todas as nossas partes, sabendo que todas são igualmente dignas de amor e respeito e sabendo que não há nenhum lugar dentro de nós que seja tão escuro que não tenhamos coragem de lá entrar.