sexta-feira, 28 de julho de 2017

A minha história de parto

 Cada vez se fala mais em violência obstétrica e na importância de criarmos condições para que, no momento do parto, tudo possa correr da melhor forma para o bebé e para a mãe. Quando pensamos em violência obstétrica temos tendência para pensar em maus tratos ou em negligência mas acontece que a violência nem sempre tem de acontecer de uma forma expressiva e agressiva para ser violência. Existe, muitas vezes, uma violência mais subtil e passiva que continua a ser violência apenas porque faz parte de uma visão do ser humano, neste caso da mulher e do parto e do bebé recém-nascido que é violenta, violenta no sentido de não considerar todas as suas necessidades e sensibilidades e violenta no sentido de não reconhecer a importância de tratar este momento com toda a delicadeza que ele merece. Uma violência que, por vezes, acontece não por má vontade mas simplesmente por ignorância de alguns aspectos que envolvem o momento do parto.
Então, é importante falarmos claramente sobre isso. E foi depois de ler este texto da Joana Silva, do blog Just Natural Please, que tomei consciência de que precisamos mesmo de falar sobre isto, porque se não falarmos e se não tivermos coragem de reflectir em conjunto sobre tudo o que passa as coisas nunca irão mudar. Hesitei sempre em escrever sobre isto porque é algo intimo e pessoal mas, a verdade, é que é preciso que partilhemos e que falemos muito para que as coisas possam mudar e para que essa mudança aconteça de forma mais rápida.

Então, aquilo que aconteceu comigo foi também uma forma de violência obstétrica, embora inicialmente tenha sido envolta em simpatia que a tornou mais difícil de identificar.
A minha história começou quando, às 40 semanas de gravidez, por volta das 2 da manhã, senti que me rebentaram as águas e decidi ir para o hospital passado pouco tempo. Enquanto estive nas urgências, na verdade, não tenho queixas e tudo correu bem e senti-me sempre respeitada. Da mesma forma, é preciso também dizer que senti sempre muito bem tratada durante todo  internamento do pós-parto, onde senti que estava a verdadeiramente a ser cuidada. O médico que me atendeu nas urgências explicou que me iria internar apenas para ser monitorizada porque não havia nenhum sinal de contracções mas o facto das águas terem rebentado poderia aumentar o risco de infecções. Quando perguntei quanto tempo teria de ficar internada ele disse-me que era impossível dizer porque poderia até levar dias para que o parto se desencadeasse de forma natural. Falou-se na possibilidade de fazer uma indução mas foi sempre muito claro que isto só aconteceria se eu pedisse e que poderia ficar vários dias à espera desde que continuasse tudo bem com o bebé, como parecia ser o caso.

Acabei então por ir para um quarto por volta das 7 da manhã e e ao meio dia comecei a ter contracções. Para espanto da enfermeira que me ligou ao ctg estas começaram muito rapidamente a tornar-se mais fortes e seguidas. Desci então para o bloco de partos, já com o meu marido que entretanto chegou. Até aqui tudo corria bem e bastante depressa. Fui examinada apenas duas ou três vezes e as enfermeiras ficavam sempre espantadas com a rapidez com que estava a acontecer a dilatação. Houve uma altura em que me sentia com quebras de tensão quando as contracções ficavam mais fortes, porque estava há muitas horas sem comer e tinha dormido muito pouco mas uma enfermeira trouxe-me um sumo de fruta que me deu logo mais energia e resolveu esse problema.

Então, ao fim talvez, de umas três horas de ter começado a ter contracções estava já na sala de parto e foi aqui que tudo se complicou. As contracções eram muito seguidas e intensas e muito rapidamente deixou de haver qualquer intervalo entre elas. A certa altura lembro-me que uma enfermeira me perguntou se eu tinha feito o curso de preparação para o parto e eu disse que não e parece que foi aqui que tudo começou a descambar. Não fiz curso porque considerei que tinha lido o suficiente sobre o tema e estava confiante, achava eu, na minha capacidade de parir. Mas a enfermeira aqui ficou preocupada por achar que eu não tinha aprendido a respirar então começou a querer ensinar-me como fazê-lo. Mas eu não queria aprender a respirar de nenhuma maneira específica, queria apenas que me deixassem em paz e à vontade. A certa altura lembro-me que alguém me disse que tinha de respirar bem porque se não não chegava oxigénio ao bebé. Hoje, olhando para trás, isto parece-me um absurdo porque obviamente que em nenhum momento eu deixei de respirar mas é claro que tinha uma respiração alterada. Antigamente havia quem defendesse que uma forma de respirar própria poderia ajudar as mulheres a controlarem a dor mas também já há muito quem diga que isso é totalmente irrelevante e que se deve deixar a mulher respirar como quiser. Na verdade, acho que essas respirações que se aprendem têm um efeito placebo e servem apenas para que a mulher acredite que pode controlar alguma coisa, mas o que eu queria naquele momento era mesmo não ter de controlar nada. Não estava com muito medo da dor. 

A certa altura a mesma enfermeira, acho eu - na verdade não estava a reparar muito bem com quem é que estava a falar - perguntou se eu queria experimentar o gás, explicou-me o que era e pareceu-me inofensivo por isso resolvi tentar. Mas aquilo não fazia efeito nenhum e ela explicava-me que não fazia efeito porque eu não estava a respirar correctamente, que era preciso por a máscara na boca e respirar não sei quando e não sei como para inspirar bem o gás no momento certo e sentir alívio. E ela já me dizia que se zangava comigo se eu não respirasse bem e lembro-me de ter um momento em que pensei que só me apetecia atirar-lhe com a máscara à cabeça.
Depois a certa altura houve também uma enfermeira, não sei se a mesma ou outra, que começou a perguntar-me em que posição é que eu queria ter o bebé. E eu não tinha vontade de lhe responder, ela insistiu, insitiu até que eu disse talvez de cócoras mas  que não sabia. Mais uma vez tudo o que queria era que me deixassem em paz e não me fizessem falar. Queria apenas que me deixassem mexer à vontade e na altura logo veria qual seria a melhor posição.

Neste caso a enfermeira estava a ser bem intencionada e realmente queria que tudo corresse como eu tinha planeado. Mas o que eu tinha planeado era justamente que não queria ter planos. Foi por isso que nunca cheguei a escrever o meu plano de parto porque, ingenuamente, acreditei que, na altura saberia o que fazer e seria capaz de o fazer.

Entretanto havia um rádio a tocar com música que não me dizia nada e até me estava a aborrecer mas não conseguia queixar-me disso. Estava naquele estado a que muitas mulheres chamam a partolândia, um estado em que estamos completamente inundadas de hormonas, que servem para atenuar a dor e que também nos põem num modo de funcionar puramente instintivo. Por isso muitos médicos, como Michelle Odent, por exemplo, defendem que o ideal é não estimular nada o lado racional da mulher durante o parto, para que essas hormonas possam fazer o seu trabalho é importante não fazer a mulher pensar, nem falar, é importante que o local seja relativamente escuro e que tudo se faça para que a mulher se sinta segura e possa activar o seu instinto, que sabe exactamente aquilo que é preciso em cada momento. Afinal de contas parir é algo mais animal do que racional.


E desde as primeiras contracções que eu ia emitindo uma espécie de gritos de cada vez que tinha uma contracção. Digo uma espécie porque não eram bem gritos, era algo que vinha bem mais de dentro, era uma vocalização instintiva que me ajudava a lidar com a dor e torná-la bem mais suportável. Não sei porquê nem de onde vinham aquelas vocalizações mas sei que na altura era tudo o que o meu corpo me pedia para fazer, para além de alguns movimentos que também iam ajudando um pouco. Quem me conhece sabe que não sou de gritar, já tive três cólicas renais e nunca gritei, já desmaiei de dor,  já chorei, já vomitei até por causa das dores mas nunca gritei porque, nesses casos, sabia que não me servia de nada, mas aqui sentia mesmo um alívio grande sempre que fazia esses sons.

Então quando as contracções passaram a ser sempre seguidas e mais intensas, naturalmente estes gritos também aumentaram de tom, creio eu. E, a partir de certa altura, comecei a ficar muito consciente de que aquelas vocalizações pareciam incomodar as pessoas, parecia-me a mim que todos à minha volta achavam que eu estava a ficar descontrolada e que isso não era bom. E foi precisamente neste momento que entrou o médico anestesista que nunca deveria ter entrado naquela sala. Lembro-me bem dele, era um rapaz novo com ar de quem estava ali há pouco tempo e de quem queria resolver as dores do mundo e a quem parecia completamente absurdo eu estar ali a sofrer quando ele me podia ajudar. Entrou e perguntou se eu não queria epidural, eu disse que não e ele insistiu, perguntou porquê,  e quis saber de que é que eu tinha medo. Eu ainda disse que tinha medo que aquilo complicasse as coisas e atrasasse tudo. Ele disse que não ia atrasar nada, que só ia deixar de sentir as dores mas ia continuar a sentir tudo o resto e podia fazer tudo na mesma, mas sem dor. Eu perguntei se seria mesmo assim, ele disse que sim. Eu ainda hesitei e perguntei se ele achava mesmo que não ia trazer nenhuma complicação e lembro-me perfeitamente da resposta porque foi aqui que cedi: ele disse que todas as pessoas naquela sala acreditavam que era mesmo a melhor ajuda naquele momento. Então eu cedi, disse que sim, que nesse caso queria. O meu marido diz que me perguntou duas ou três vezes se eu tinha mesmo a certeza que queria mas já nem me lembro disso. Só me lembro que a seguir me começaram a dizer que tinha de ficar muito quieta para levar a injecção e eu não conseguia ficar quieta porque todo o meu corpo me pedia para me mexer. Nesta fase eu já tinha a dilatação completa e estava no período expulsivo. O meu marido também conta que houve uma enfermeira que ainda disse que já não valia a pena mas ninguém a ouviu. Lembro-me que foi preciso agarrarem-me para me darem a injecção e foram precisas todas as pessoas da sala para me segurarem as pernas enquanto eu tentava mexer-me e gritava “mas ele já quer sair, ele quer sair.”  

Mas, assim que me deram a epidural, deixei de sentir as dores e tudo o resto. Perdi toda a sensibilidade nas pernas e em todos os músculos da cintura para baixo. Tive de ficar deitada porque as minhas pernas pareciam mortas e quando me diziam que tinha de fazer força não o conseguia fazer porque não sentia absolutamente nada. E por isso um parto que estava quase no final ainda demorou mais um bom bocado e foi preciso vir um médico para fazer a episiotomia e usar ventosas porque para puxar o bebé porque eu já não era capaz.

A certa altura lembro-me que todos me gritavam para fazer força e eu fazia mas não nos músculos certos e diziam-me que não era na cara que precisava de fazer força e eu voltava a tentar. Às tantas, com todos a ralharem e eu sem saber mais o que fazer, o meu marido disse qualquer coisa do género vamos lá ter calma e o médico só lhe gritou “calma, não, calma não, que esse bebé agora tem mesmo de sair que já está a demorar tempo demais.”

Esse médico, ao contrário de todos os outros, foi sempre frio e distante. Nunca me explicou o que estava a fazer, nem porque é que o fazia. Na verdade ele estava ali a dirigir tudo mas foi sempre uma outra médica, em formação, que fez tudo, a quem ele ia dando ordens e explicando as coisas como se ela estivesse a mexer num boneco e não numa pessoa real, que estava ali a ouvir tudo e que era também uma parte do processo. No final, quando perguntei quantos pontos tinha levado, até me respondeu ligeiramente irritado que as senhoras querem saber o número de pontos mas que ali não se contavam os pontos.

Quando o meu filho nasceu, por ter demorado tanto tempo no período expulsivo penso eu, estava roxo e só me lembro de o ver ser levado para outra sala onde ainda ficou um bocado para recuperar. Só passado um bocado é que a enfermeira disse ao meu marido que podia ir lá vê-lo mas ele também não pode pegar-lhe nessa altura.

Quando o trouxeram, passado talvez uma meia hora, já vinha vestido e limpo e eu fiquei com um sentimento de culpa do tamanho do mundo por ter deixado que o levassem, por ter aceitado a maldita epidural, por não ter sido capaz de fazer força, por não ter tido sequer consciência do momento em que nasceu.
Com a epidural perdi as dores mas perdi também toda a consciência do meu corpo da cintura para baixo e a minha capacidade de ter um papel activo naquele momento tão importante. Mas mais do que isso, só mais tarde percebi, que me senti também a perder a ligação que tinha com o meu filho e que estava tão presente até essa altura. Senti-me como se o tivesse traído porque ele continua a fazer o papel dele mas eu já não era capaz de fazer o meu.

O meu primeiro parto tinha sido uma cesariana porque o bebé não tinha dado a volta e, agora, com um parto natural, a frustração de não estar com ele logo nos primeiros momentos e essa sensação horrível de o ver ser tirado de dentro de mim e logo levado para longe, era igual mas ainda com a agravante da culpa de sentir que agora era eu que tinha falhado.

Na altura senti que a culpa era mesmo toda minha porque não tinha sido capaz de dizer que não à epidural. Mas agora, olhando para trás, sinto que deveria ter sido protegida dessa pressão e sinto-me zangada com o médico que pressionou mas também com todas as outras pessoas que não impediram que isso tivesse acontecido. Na altura fiquei também zangada com o meu marido que não me impediu de levar a epidural mas hoje em dia reconheço que ele também estava num papel difícil e ingrato porque também tinha o direito de estar nervoso, uma vez que também era ele que estava prestes a tornar-se pai e realmente não podia tomar decisões sobre algo que só eu é que sentia.

Por isso é que acho importante que falemos honestamente sobre estas coisas. Porque os profissionais precisam de saber que é importante confiarem mais nas mulheres e em todo o processo de parto. Porque senti que o que falhou no meu caso foi mesmo isso: a confiança de que tudo estava a desenrolar-se como devia. Esta confiança acabou por desaparecer de mim porque não a senti nas pessoas à minha volta. E é isso que sinto que falta: tratarmos o parto como um evento natural e normal que deve ser encarado com toda a normalidade excepto nos casos em que haja complicações.

Uma das coisas em que pensei foi na possibilidade de ter um parto em casa. Eu nasci em casa e sempre acreditei que esta é uma possibilidade válida nos casos em que não há complicações. Mas, ironicamente, uma das razões que me levou ao hospital foi pensar que queria poder gritar à vontade e as horas que fosse preciso sem ter os vizinhos a bater-me à porta ás 3 da manhã. Pensei que escolhendo um hospital com fama de se dedicar a partos mais humanizados poderia confiar e entregar-me à vontade às pessoas que o fizessem. Fui ingénua e hoje o que faria diferente seria ter uma doula que me pudesse proteger mesmo das boas intenções. Mas, na verdade, gostaria que não fosse preciso ir para o hospital com alguém para me defender. E que também não fosse preciso pensar em ficar em casa apenas para estar protegida dessas intervenções desnecessárias.

Então o que eu gostava mesmo era que passássemos a acreditar mais no corpo da mulher e a compreender melhor que uma mulher a parir precisa apenas de se sentir segura e de um ambiente tranquilo, com o mínimo de intervenções onde tudo se possa desenrolar. Os médicos precisam de aprender a confiar na natureza e a saberem que, neste caso, o ideal é mesmo que não sejam necessários.

Acredito que o parto é um momento importante na vida de qualquer mulher mas também e ainda mais para o bebé. Na verdade tive muita sorte do meu parto não ter deixado grandes sequelas físicas para além de me ter obrigado a passar uma semana de cama totalmente incapaz de fazer o que quer que fosse.  Mas as sequelas mais importantes muitas vezes são aquelas que não se vêem. E a verdade é que acredito que um parto complicado pode influenciar todo o puerpério negativamente, com uma mãe mais nervosa e insegura mas também o bebé.

Para que a transição se faça da forma mais suave possível para o bebé é fundamental que haja o contacto pele com pele logo a seguir ao nascimento e é fundamental que o bebé seja deixado em paz, livre de intervenções e que tenha todo o tempo para se habituar a estar cá fora, antes de ser pesado, medido e etc. Um bebé que é recebido sem estes cuidados, a quem nem sequer é permitido que fique junto da mãe, o único corpo que conhece, nos primeiros tempos de vida, terá todas as probabilidades de ser um bebé mais ansioso, mais nervoso, um bebé mais reactivo e mais sensível, para além de todas as complicações e dificuldades que isto pode trazer à amamentação que, no meu caso, felizmente não aconteceram. E se juntarmos a um bebé reactivo e sensível uma mãe que se sente ainda traumatizada, deprimida, nervosa, agitada ou culpada porque o parto não correu como devia, então é claro que aumentamos muito as probabilidades de que tudo comece a correr mal. Porque o parto é um momento tão importante tem um impacto também muito grande na estrutura psicológica da mulher e, quando as coisas não correm como devia, é muito fácil que surjam traumas que podem deixar marcas profundas. No meu caso, lembro-me bem de ter ficado ainda vários dias num estado de alerta que nunca me lembro de ter conhecido antes, como se fosse impossível relaxar porque todo o meu organismo tinha entrado num modo de defesa e protecção. E claro que esta não é a melhor forma de nos ligarmos a um recém-nascido que, ainda por cima, é altamente influenciável e permeável às emoções da mãe.

Gordon Neufeld diz que a hipersensibilidade é a marca de um nascimento que teve demasiadas intervenções. E temos cada vez mais bebés hipersensíveis, bebés mais reactivos, que choram mais e são mais difíceis de acalmar, bebés também com mais dificuldade para dormir ou mamar e bebés que são mais desafiantes para os pais. Acredito que uma parentalidade com  o apego em mente pode servir para corrigir ou diminuir muitas destas marcas mas, se a mãe também está fragilizada, traumatizada e em alerta porque o parto não correu bem então torna-se mais difícil ler eficazmente os sinais do bebé e ser uma fonte de segurança e conforto para ele.  E se o parto também não a ajudou a acreditar em si e nas suas capacidades, isto pode fazê-la sentir-se menos capaz de lidar com um bebé que ainda por cima é mais sensível.

Então precisamos de saber receber os bebés neste mundo com toda a tranquilidade que eles merecem e precisam e para isso precisamos de re-aprender a confiar na mulher, no seu corpo e nas suas capacidades. E reconhecer que, se a ciência e a medicina nos trouxeram muitas vantagens, há momentos em que é muito bom que saibamos que pô-las de lado e respeitar a natureza. Por isso acho que é importante falarmos, debatermos e expormos as nossas experiências e angústias, para que as coisas possam realmente mudar e foi por isso que decidi também partilhar a minha experiência, porque precisamos mesmo de várias vozes a falar disto e a pedir as mudanças que são necessárias. 

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Dormir como um bebé

Quando temos um bebé uma das primeiras perguntas que ouvimos é se dorme bem e entre pais recentes este é também um dos temas de conversa mais frequentes. E, quando temos um bebé que acorda muitas vezes, a tendência é para acreditarmos que haverá algo de errado, principalmente quando já tem alguns meses e esse padrão se mantém. E esta é também uma das causas mais frequentes para os pais de bebés pequenos procurarem ajuda. 
Então há várias coisas que precisamos de considerar quando falamos do sono dos bebés. 
A primeira é que é importante saber que é muito natural que um bebé de meses acorde várias vezes por noite e é perfeitamente natural que as crianças comecem a ser capazes de dormir uma noite inteira seguida apenas por volta dos dois ou três anos de idade. Ao contrário do que muitas vezes se sugere é isso que quer dizer na realidade dormir como um bebé: acordar algumas vezes de noite. É verdade que existem bebés que dormem várias horas seguidas desde os primeiros meses e que conseguem passar uma noite inteira sem acordar antes de fazerem um ano mas, na verdade, as estatísticas indicam que estes não passam de pequena minoria e que cerca de 86% dos bebés com menos de ano acordam algumas vezes por noite.

Porque é que isto acontece? 

Nos primeiros meses o bebé acorda porque precisa mesmo de mamar e é fundamental que o faça não só para se alimentar porque ainda é muito pequeno para passar várias horas sem alimento e, se isto acontecer, pode dar origem a uma perigosa baixa de açúcar no sangue, mas também porque a própria mãe precisa desse estímulo para regular a sua produção de leite. É nas mamadas da noite que a mãe segrega mais prolactina, uma hormona que influencia a produção de leite, por isso estas são muito importantes nos primeiros tempos para manter a produção de leite. Quando alguém sugere que se dê um biberão ao bebé durante a noite para que a mãe possa descansar e dormir toda a noite seguida, por muita boa que seja a intenção, a verdade é que isto pode prejudicar a produção dessa hormona e por em causa a quantidade de leite que a mãe produz.

Mas, a partir dos 4, 5 meses de idade, o organismo do bebé começa a ser capaz de passar mais horas sem alimento, sem correr o risco de entrar em hipoglicemia. Acontece que os bebés têm um padrão de sono diferente do dos adultos: os seus ciclos de sono são mais curtos que os nossos e, sabendo que é mais fácil despertarmos quando estamos na fase de transição para um ciclo de sono diferente, significa que os bebés têm mais probabilidades de que isto aconteça mais vezes. 

James McKenna um investigador dedicado a estudar e compreender o sono dos bebés acredita que esta tendência que os bebés têm para despertar mais facilmente funciona como uma protecção contra o síndroma da morte súbita. Quando os bebés entram em sono profundo ficam mais vulneráveis a paragens respiratórias que podem acontecer devido à imaturidade do seu sistema respiratório. Segundo este autor dormir junto da mãe também pode ser uma protecção contra a morte súbita precisamente porque ajuda a regularizar a respiração. 

Por outro lado os bebés mais pequenos também ainda não regularizaram a sua produção de cortisol. Esta é uma hormona que, entre outras funções importantes, ajuda a regular os nossos ciclos de sono. Nos adultos (quando tudo funciona como deveria) os níveis de cortisol atingem a sua quantidade mínima quando nos encontramos em sono profundo e ficam no seu máximo, de manhã, mesmo antes de estarmos prontos para despertar. Nos bebés isto ainda não acontece e esta hormona flutua em quantidades mais irregulares e algumas investigações demonstram que um padrão mais definido nos ritmos de cortisol só começa a surgir por volta dos 9 meses. Isto quer dizer que é perfeitamente natural que um bebé fique completamente desperto e pronto para brincar a meio da noite, para grande  angústia dos pais. Por outro lado também sabemos que, nas crianças tal como nos adultos, a produção de cortisol é alterada pelo stress que faz com que esta hormona seja segregada em maiores quantidades, o que significa que uma criança agitada ou ansiosa por algum motivo (tal como um adulto) também terá probabilidades de ter um padrão de sono alterado. 

O que podemos fazer? 

A verdade é que existem algumas coisas que podemos fazer para ajudar um bebé a dormir melhor mas não há nada que possamos fazer para o ensinar a dormir. Tal como não se ensina a comer, a fazer xixi ou cocó também não se pode ensinar a dormir ao contrário do que tanta gente diz. 

Para ajudar um bebé a dormir é importante ter em conta que o cortisol, que regula o sono, também tem um papel importante na resposta de stress. Então, tudo o que contribua para deixar o bebé agitado irá aumentar a produção de cortisol o que, por sua vez, irá dificultar o sono. Por isso é importante que o final do dia seja o mais tranquilo possível para que o bebé possa começar a acalmar. Sabe-se que as crianças pequenas que passam demasiadas horas na creche começam a aumentar os seus níveis de cortisol em vez destes diminuírem, como seria natural, ao final do dia. 
Por outro lado, tudo o que sejam luzes fortes ou barulhos demasiados altos ou estimulantes também irão afectar a produção de melatonina, outra hormona que tem um papel fundamental no sono. Em particular as luzes de ecrãs de televisão, computadores ou telemóveis, parecem enganar o cérebro levando-o a acreditar que ainda é dia e alterar a sua produção de melatonina dificultando o sono. 

Então na verdade o que podemos fazer é compreender que existe um determinado tipo de ambiente que facilita o sono mas não podemos fazer muito mais se não criá-lo, o melhor possível.

Um aspecto fundamental para qualquer pessoa adormecer é a segurança, então é muito importante que o bebé se sinta seguro para conseguir dormir e não há lugar em  que um bebé ou criança pequena se sinta mais seguro que o colo da mãe ou do pai. 

Com os bebés mais pequenos o movimento rítmico, como o que fazemos ao embalar, também ajudar muito a adormecer porque estimula zonas no cérebro que facilitam uma resposta de relaxamento por parte do bebé. 

Mas, na verdade, em vez de nos preocuparmos tanto com tudo o que podemos fazer para levar o bebé a dormir mais e melhor precisamos mesmo é que compreender como é que nós, mães e pais, podemos descansar quando temos um bebé que acorda com frequência de noite. 

Quase sempre o foco está no bebé e naquilo que é preciso fazer para o mudar quando na verdade o foco deveria estar também na mãe e no pai e na forma como podem adaptar-se a essa nova realidade de ter um bebé que acorda com frequência. É preciso que aprendamos a confiar nos nossos filhos e que saibamos que os acordares nocturnos são normais e naturais. O que não é natural é termos um bebé de meses e precisarmos de nos levantar cedo no dia seguinte para passar o dia todo no trabalho. O ritmo das nossas vidas é que não tem nada de natural mas os bebés ainda não percebem nada de horários nem de trabalho nem deste ritmo tão pouco natural que vivemos hoje por isso o seu sono mantém-se como sempre foi desde há séculos quando tudo era feito de maneira diferente.

Então precisamos de perguntar o que é que podemos fazer para ajudar os pais a descansar mais quando têm um bebé que acorda muito de noite e não o que é podemos fazer para conseguir que o bebé durma a noite toda. Precisamos de mudar o foco e compreender que o problema não está no bebé mas na forma como organizamos a vida e nas pressões que criamos à volta dos pais e mães recentes.

Sabemos que quando o cérebro está em grande transformação, durante os dois primeiros anos de vida, tudo o que fazemos tem muito mais impacto. E sabemos hoje em dia também que é importante que os pais sejam capazes e estejam disponíveis para responder às necessidades dos filhos se querem criar com eles um tipo de apego seguro, que por sua vez, é fundamental para que a criança possa crescer feliz e confiante. Então em vez de perdermos tanto tempo a tentar mudar os bebés precisamos de perceber o que podemos mudar em nós para viver melhor com um bebé que acorda muito. 

Uma das coisas que ajuda a descansar, ao contrário do que tantas vezes se pensa, é a amamentação. Primeiro porque é muito mais fácil dar mama do que andar a fazer biberões a meio da noite, depois porque o leite da mama tem substâncias que ajudam a induzir o sono e por um bebé na mama é uma das formas mais fáceis de o adormecer, quase sempre. Além disso a amamentação também promove na mãe a libertação de hormonas que ajudam a relaxar e dormir mais facilmente.
Outra coisa que pode ajudar muito é partilhar a cama com o bebé.  Em alguns casos os bebés passam mesmo a dormir melhor quando dormem junto dos pais mas, mesmo que isso não aconteça, os pais também podem descansar melhor quando têm o bebé na cama. O que é importante para não alterar muito a produção de melatonina e de cortisol, tanto no bebé como na mãe, é que haja o menor número de estímulos possível durante os despertares. Para isso é importante não acender luzes e fazer o menor número de movimentos possível. Se a  mãe ou o pai precisam de sair da cama para tirar o bebé do berço ou, pior ainda, se precisam de ir para outro quarto, já vão ficar muito mais despertos e poderão ter mais dificuldade para voltar a adormecer ou, mesmo que adormeçam rapidamente outra vez, irão demorar mais tempo para voltar a entrar num sono mais profundo. Dormir junto da mãe ou do pai também ajuda o bebé a não precisar de ficar muito desperto porque os pais estão logo ali e podem acordar assim que este começa a movimentar-se mais por isso ele não chega a ter de chorar para chamar a atenção e será também mais fácil que volte a adormecer. Na verdade muitas mãe que dormem com os filhos contam que há uma espécie de sintonia entre ambos e que a mãe acorda muitas vezes uns segundos antes do filho, como se os seus ciclos de sono, estivessem completamente sintonizados. A amamentação também facilita muito este processo porque é mais fácil o bebé adormecer na mama e a esta também permite à mãe segregar hormonas que também a ajudam a estar mais relaxada e a ser capaz de dormir melhor.

Por outro lado uma mãe que possa ficar em casa com o filho também tem possibilidade de aproveitar para dormir um bocadinho quando o bebé dorme de dia ou poderá não precisar de se levantar tão cedo de manhã. É muito bom que as mulheres hoje em dia tenham a possibilidade de seguir uma carreira e claro que esta tem um papel importante para muitas mães mas, a verdade, é que não é natural que um bebé pequeno tenha de passar o dia inteiro longe da mãe assim como também não é natural que uma mãe de um bebé pequeno tenha de passar o dia inteiro a trabalhar. Então aquilo que está errado não é o facto dos bebés acordarem muito de noite, o que está errado é que a mãe não possa ficar em casa para aproveitar as sestas diurnas do bebé para dormir também um pouco. Assim como também não é natural que as mães vivam tão isoladas como acontece hoje em dia, sem ninguém que possa ficar uns minutos com o bebé para a mãe descansar se for preciso.

O que está errado não é o sono dos bebés que acordam muito mas sim a forma como a sociedade lida com isso que está ligada à forma como vemos os bebés e as mães. Precisamos de entender que os bebés precisam de estar a maior parte do tempo com a mãe, pelo menos durante o seu primeiro ano de vida e precisamos de entender que a mãe também precisa de estar com o bebé durante a maior parte do tempo. E negarmos isto é negar a natureza dos bebés mas também a das mães. Uma mãe também não está preparada para estar todo o dia longe do seu bebé durante os primeiros meses da vida deste, não sem sofrimento ou ansiedade.

Então o mais importante quando falamos de sono, assim como em tantas outras coisas, é aprendermos a confiar nos bebés e não termos medo de lhes dar o que precisam. Tantos pais e mães constatam que os filhos adormecem melhor no colo, na mama ou nas suas camas mas ficam com medo de lhes dar esse conforto. Acredito que caminhamos cada vez mais para uma mudança de paradigma no que toca à visão sobre o desenvolvimento infantil: se antes a grande preocupação era com a independência que a criança precisava de atingir, agora começamos a perceber que é preciso facilitar a dependência. Porque é natural que um bebé ou criança sejam dependentes e é importante que essa dependência seja aceite e acarinhada e até encorajada em muitos aspectos. Só assim é que podemos dar origem a adulto verdadeiramente autónomo. Prefiro dizer autónomo e não independente, porque a verdade é que todos somos dependentes uns dos outros e aquilo que a ciência cada vez mais descobre é que é fundamental que sejamos capazes de reconhecer essa interdependência para nos sentirmos parte de um todo e podermos ser verdadeiramente felizes. A sensação de isolamento está ligada à tristeza e a capacidade de nos sentirmos parte de um todo é importante para sermos capazes de dar um significado à nossa vida. Então precisamos de não ter medo de alimentar nos nossos filhos uma dependência saudável que lhes permita confiar e acreditar nos outros. Quando temos consciência que somos apenas uma parte de um todo e quando somos capazes de nos ligar a todos os que nos rodeiam e ao mundo à nossa volta sem medo de ser magoados ou de sofrer aumentamos muito as nossas probabilidades de estar bem e de sermos felizes.