sexta-feira, 28 de abril de 2017

Castigos e consequências - educar com o coração macio

Hoje em dia, felizmente, começam a surgir cada vez mais pessoas com consciência de que tanto os castigos como as palmadas são desnecessários na educação das crianças e, mais do que isso, podem mesmo ser nocivos mas acredito que ainda é importante explicar o porquê desta visão.  

Em primeiro lugar  precisamos de compreender que o cérebro humano é bastante moldável, sobretudo nos primeiros anos de vida - em que se encontra numa fase muito activa de desenvolvimento - e que as relações que formamos são uma das principais influências para a sua formação. Sabemos hoje que o cérebro de uma criança mal tratada ou negligenciada se desenvolve de forma muito diferente do cérebro de uma criança que tenha uma boa relação com os seus pais: algumas estruturas cerebrais, como o hipocampo ou certas zonas do córtex, por exemplo, desenvolvem-se melhor nas crianças que têm uma boa ligação com os seus pais ou aquilo a que chamamos um apego seguro. Então isto quer dizer que, tudo o que fizermos com os nossos filhos, sobretudo nos seus primeiros anos irá contribuir para moldar o seu cérebro e o seu sistema nervoso o que, por sua vez, irá também contribuir para definir a forma como eles se irão relacionar com o outros, com o mundo e consigo mesmos. 

Quando a criança nasce ela está totalmente predisposta para estabelecer uma ligação com os seus pais e activa aquilo que podemos chamar de instinto de apego. Acontece que sempre que nos ligamos profundamente a alguém também ficamos vulneráveis à forma como essa pessoa lida connosco e é muito mais fácil sermos magoados por alguém de quem gostamos simplesmente porque nos importa aquilo que a pessoa pensa e sente por nós. Porque quando gostamos de alguém tudo o que mais queremos é que essa pessoa goste de nós também. E, se enquanto adultos é possível perceber que, mesmo quando alguém nos está a tratar mal não quer dizer que não goste de nós, para uma criança pequena isto é mesmo impossível. 

Muitas vezes as pessoas que são contra os castigos ou palmadas dão exemplos de situações em que um adulto castiga outro adulto porque quebrou uma regra ou fez algo de que o primeiro não gostou. Como por exemplo uma mulher que impediria o marido de ver televisão durante uma semana porque ele tinha chegado a casa muito tarde uma certa noite, sem sequer avisar. Estes exemplos até podem servir para se ver um pouco o ridículo de certas atitudes mas, na verdade, não compreendem a questão fundamental: é que uma criança não é um adulto. E, para quem acha que se deve castigar ou bater fica muito fácil dizer que os adultos já não precisam de ser educados e as crianças sim. E é verdade que uma criança ainda precisa de aprender certas coisas que um adulto já deveria saber.  E, se acredito que as crianças têm o direito de ser tão respeitadas como os adultos, também acredito que não podemos lidar com elas da mesma forma com que lidamos com os adultos. Porque é verdade que precisamos de educar, de ensinar e de orientar as crianças e isto é importante para o seu bom desenvolvimento mas, mais importante que isso neste caso, porque as crianças não têm a mesma compreensão e a mesma capacidade de defesa de um adulto. Quando tratamos mal uma criança os estragos são bem maiores do que quando tratamos mal um adulto porque, além de todo o seu cérebro ainda estar em construção, uma criança simplesmente não consegue perceber que quando lhe gritamos, batemos ou castigamos o estamos a fazer porque gostamos delas e queremos o seu bem. 

E quando somos repetidamente magoados - e não há maior dor do que acreditar que aqueles de quem gostamos e precisamos não gostam de nós - precisamos de começar a criar defesas que nos ajudem a deixar de sentir essa dor. E a melhor defesa é deixar de sentir que precisamos tanto dos outros, a melhor defesa é acreditar que não precisamos de nos sentir amados ou acolhidos porque assim deixamos de sentir essa dor que acontece sempre que acreditamos que as pessoas importantes na nossa vida afinal não gostam de nós. 

E se essa defesa precisar de ser activada muitas vezes então essa criança vai crescer como um adulto distante dos sentimentos - porque foram eles a fonte do seu sofrimento que precisou de ser como que desligada ou reprimida - mas também distante dos outros. E isso quer dizer que será uma criança muito mais difícil de educar ou de guiar porque quando ela desliga esse instinto básico e fundamental que lhe diz que deve construir uma ligação com os seus pais, também desliga a parte que lhes quer agradar e a parte que sabe que se deve deixar guiar. E quando isto acontece com os pais, que são a primeiras pessoas com quem aprendemos a ler o mundo e a vida, também acontecerá muito mais facilmente com os outros adultos. 

E depois, no fundo, é apenas uma questão de grau: se a dor foi muito forte e muito repetida, significa que esse desligar também tem de ser grande; se foi um pouco menos intensa ou aconteceu  menos vezes, pode haver apenas um desligar parcial que funciona como uma espécie de muralha que pode ser activada sempre que a criança ou adulto se sentir em perigo. E o perigo pode vir de qualquer sinal de rejeição mas pode vir também do medo de criar uma ligação verdadeira, porque afinal, as relações não são completamente seguras. 

Castigos diferentes com o mesmo resultado 

Se castigamos uma criança fazendo-a ficar sozinha alguns momentos porque se portou mal - e este é o castigo que costuma ser mais usado com crianças pequenas - aquilo que lhe estamos a transmitir, aquilo que ela é capaz de entender, é que não gostamos dela naquele momento. Aquilo que dizemos a uma criança quando lhe recusamos que fique perto de nós é que não é digna de estar connosco naquele momento, que não somos capazes de aceitar a sua presença. E isto dói muito a uma criança que ainda não tem maturidade para perceber que os pais podem estar zangados naquele momento mas, ao mesmo tempo, gostam muito dela. Porque para as crianças o mundo é apenas a preto e branco, só a partir dos 5, 6 anos de idade é que uma criança começa a ser capaz de perceber que uma pessoa pode ter duas emoções contraditórias e que existe muito cinzento na vida mas, para isto acontecer, o desenvolvimento tem de estar a correr bem e, na verdade, existem muitos adultos que ainda vêem o mundo sempre a preto e branco. 

Com as crianças mais velhas, ou adolescentes, os castigos costumam passar mais por lhes retirar coisas de que gostam ou que são importantes para elas, como o direito de sair com amigos, por exemplo. Mas, na verdade, isto acaba por ter o mesmo efeito porque aquilo que a criança sente é que os pais, conhecendo um pouco do seu mundo interno, o estão a usar contra si. É como se os pais conhecessem os seus pontos fracos e usam-nos para a atingir. Então isto também magoa bastante. Para além do facto de que não é grande aprendizagem para um jovem ou criança passar a fazer algo apenas porque tem medo das consequências caso não o faça, a verdade, é que magoa saber que alguém nos conhece bem, sabe aquilo de que gostamos e que é importante para nós e o usa para nos atingir ou magoar. E se um adolescente já poderá ter alguma maturidade para perceber que existem sentimentos contraditórios e que a zanga dos pais não quer dizer que eles não o amam, continua a ser um facto que se tornou vulnerável ao dar-se a conhecer e mostrar os seus gostos e foi magoado pelas pessoas que, supostamente, o deveriam apoiar e compreender. E magoa sempre sentirmos que nos expusemos, que nos abrimos e nos tornámos vulneráveis com alguém que, depois, usa isso contra nós. 

E, e castigar magoa, então bater tem um efeito ainda mais negativo, mas com o mesmo mecanismo e de que já falei aqui

Em muitos modelos de psicologia positiva recomenda-se que deixemos a criança sentir as consequências dos seus actos em vez de castigar, como forma dela aprender. Se, em alguns casos específicos, isto pode ser adequado em muitos poderá ser muito parecido com uma espécie de castigo e ter exactamente o mesmo efeito. Porque uma criança nem sempre tem a capacidade de prever as consequências para o seu comportamento mas nós temos, então se a deixamos sofrê-las sem fazer nada isso também pode ser sentido como uma espécie de abandono. 
Por exemplo, se a criança não quer vestir o casaco para sair mas nós sabemos que, depois de algum tempo na rua vai começar a sentir frio, pode ser pedagógico deixá-la sentir esse frio alguns instantes mas, levar o casaco para lho dar quando isto acontecer. Se deixamos a criança simplesmente ficar com frio porque não quisemos levar-lhe o casaco, aí isto será muito parecido com um castigo porque nos desobedeceu e é uma espécie de abandono deixá-la lidar sozinha com essa consequência. 


Então o que podemos fazer? 

Acredito naquilo que defende Gordon Neufeld: a meta de qualquer processo educativo deverá ser criar crianças que possam tornar-se em adultos com o coração macio (em português costumamos dizer coração mole mas esta expressão tem geralmente um sentido menos positivo); porque é só através desse coração macio que os nossos ensinamentos podem passar. Uma criança com o coração macio é uma criança que não foi excessivamente magoada e que, por isso, não tem medo de ser vulnerável. E não há maior vulnerabilidade que entregar-se de alma e coração a outro ser. E é isso que faz uma criança saudável e é esse o segredo de tornar fácil a educação dos nossos filhos: não termos receio de que eles se entreguem a nós por completo sendo que, para isso, não podemos nós também ter receio de nos entregar a eles com todo o coração. 

Então precisamos de estar muito atentos aos seus sentimentos e de sabermos manter uma liderança sempre com estes em mente. E precisamos de ser capazes de reparar a nossa relação com ela sempre que esta for posta em causa, principalmente quando isto acontece algum comportamento que não gostaríamos de ter tido.
Precisamos de mostrar que, dê lá por onde der estamos presentes, atentos e prontos para responder às suas necessidades. 
Precisamos de mostrar que as conhecemos, compreendemos e respeitamos e que somos capazes de acolher os seus sentimentos. 
Precisamos de mostrar que, para nós, aquela relação também é preciosa, tão preciosa que faremos tudo para preservar e cuidar o melhor possível. 
Precisamos de mostrar que vemos os seus sentimentos e que somos capazes de os acolher e aceitar mesmo nas alturas em que não aceitamos o seu comportamento ou nas alturas em que queremos mostrar-lhes um caminho diferente a seguir. 
Precisamos que confiem em nós e para isso precisamos de nos tornar de confiança, de mostrar que estamos presentes, disponíveis e que também nós podemos ser vulneráveis na relação. 

Porque uma criança que se entrega é uma criança que confia e uma criança que confia é uma criança que se deixa orientar, que se deixa guiar. E, ao mesmo tempo, é uma criança calma, tranquila porque o seu instinto lhe diz que está tudo certo. Porque é este instinto que lhe diz que deve procurar uma figura para lhe servir de modelo e de guia, que a faça sentir-se amada mas também protegida, segura. E uma criança que confia é também uma criança que não tem medo de estabelecer relações e também uma criança que não tem medo de sentir. E, ao mesmo tempo, é também uma criança que não tem medo de aprender, de arriscar, de viver porque sabe que encontrará sempre o conforto de se sentir amada, acolhida, protegida por aqueles que são mais importantes para si, mesmo nas situações mais difíceis. 

E uma criança que não tem medo de amar nem de ser amada é uma criança que se torna num adulto capaz de criar verdadeiramente um mundo melhor. Porque um adulto que não tem medo de sentir, nem tem medo de se ligar aos outros, é um adulto mais capaz de sentir empatia e um adulto muito menos capaz de provocar sofrimento. Na verdade, acredito que, se todos fossemos capazes de manter sempre um coração macio o mundo seria um lugar muito mais agradável com relações muito mais harmoniosas e felizes e onde todos seríamos mais capazes de nos respeitar uns aos outros. 

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