sexta-feira, 3 de março de 2017

Independência e coração

Hoje em dia, nas sociedades ocidentais, acho  que vivemos um bocado obcecados com a ideia de que as crianças devem ser independentes e muitas vezes parece que a meta de todos os métodos educativos deve ser esta independência que, muitas vezes, se defende que quanto mais cedo acontecer melhor será.

Primeiro acho que é importante lembrar que nas sociedades orientais –menos individualistas e em que as crianças são educadas mais para fazerem parte do todo – esta preocupação não existe ou, pelo menos, não estará tão presente.

Será essa talvez uma das razões pelas quais no Japão, por exemplo, é perfeitamente natural e normal que um bebé durma no quarto dos pais e, mais tarde, até no quarto dos avós que muitas vezes também moram com os filhos e netos. Apesar de não ser este o tema deste artigo vale a pena mencionar que alguns investigadores apontam justamente esta normalidade de os bebés dormirem acompanhados como um dos factores de protecção contra o síndroma da morte súbita que é praticamente inexistente no Japão, sendo que este termo nem sequer existe em japonês. 

É importante perceber que é a criança deve ser educada para ter alguma autonomia, no sentido de ter espaço para se descobrir a si mesma enquanto pessoa e enquanto indivíduo com gostos, motivações e emoções próprias mas também é importante que sejamos capazes de distinguir esta autonomia ou este auto-conhecimento desta questão da independência. Porque ninguém é verdadeiramente independente e é bom que o saibamos e que não tenhamos medo de o reconhecer. Todos precisamos dos outros e as crianças, sobretudo nos seus primeiros anos de vida, precisam mesmo de se sentir parte de um todo e de se sentirem dependentes dos seus pais para que possam fazer com toda a segurança esse caminho de auto-descoberta que acontece com toda a naturalidade se lhe dermos a segurança necessária para tal.

A criança precisa de não ter medo de si própria, dos seus sentimentos para que se possa descobrir. Também precisa de saber que será aceite mesmo que descubra e demonstre partes de si mais assustadoras ou menos positivas. Precisa de sentir que tem o apoio total e o amor incondicional dos pais para não ter medo de confiar nos seus sentimentos, nas suas emoções e para não ter medo de expor aquilo que sente e aquilo que vai descobrindo ao logo de todo esse processo de crescimento. 

Mas, para que este apoio aconteça e para que a criança se sinta incondicionalmente amada a sua dependência inicial precisa de ser respeitada e acolhida. E precisamos de compreender que um bebé e uma criança pequena são seres fusionais por natureza e isso está certo, porque quando essa fusão deixar de ser necessária a natureza da criança irá encarregar-se de o mostrar.

Em muitos casos hoje em dia vive-se uma verdadeira ambivalência no que concerne ao desenvolvimento desta independência e acredito que ela surge por causa de um desconhecimento profundo daquilo que são as necessidades primárias de uma criança: ainda há dias observava o pai de uma criança com cerca de 3 anos que não a deixava brincar fora de um tapete almofadado; a criança estava a brincar com outra a empurrar um carro para trás e para a frente e, cada vez que punha literalmente um pé fora do tapete, o pai começava a dizer-lhe que não podia, que tinha de brincar no tapete. Fazia-o com ternura e paciência mas não lhe dava espaço para descobrir que o mundo não é todo almofadado e que podemos cair e magoar-nos muitas vezes mas que tudo isso faz parte do crescimento e que os nossos pais vão estar cá não para nos impedir de cair mas para nos darem um lugar seguro onde chorar depois disso acontecer. Muitas vezes vejo crianças que querem correr, ou querem saltar a quem os pais agarram imediatamente a mão e dizem que não podem fazê-lo porque se podem magoar. Algumas dessas crianças são precisamente as mesmas que foram ensinadas a dormir sozinhas no quarto desde poucos meses de idade porque tinham se aprender a dormir sem ajudas para se tornarem independentes. Será que não vemos aqui as enormes contradições que existem?

Se por um lado queremos crianças independentes desde cedo, com coisas em que é muito natural que elas não sejam capazes de fazer – como dormir sozinho em bebé, ou regular as suas próprias emoções com crianças pequenas – por outro lado não lhes damos espaço para explorar essa independência justamente onde ela deve mais naturalmente acontecer: na exploração corporal e espacial, que é tão importante para o desenvolvimento da motricidade mas não só; porque é nestas brincadeiras em que a criança se afasta um pouco dos pais e em que experimenta correr ou fazer algo mais arriscado que nunca tinha feito que ela tem espaço para descobrir os seus limites, as suas capacidades, as suas motivações e até a sua coragem ou a sua possibilidade de existir afastada dos pais e por si própria naqueles momentos.

Mas precisamos também de começar por reconhecer que as crianças são seres dependentes por natureza. Precisamos de saber que as crianças nascem com um instinto básico: o de se apegarem aos seus principais cuidadores e esse apego implica dependência. E isso significa que uma criança que se estabelece esta relação de apego tem que sentir que essa dependência é aceite, compreendida e acolhida. Cito muitas vezes o Gordon Neufeld, psicólogo canadiano, porque ele construiu o modelo de desenvolvimento infantil mais completo que conheço e que gira sempre em torno deste conceito de apego. E, para Neufeld, é essencial que a criança saiba que pode depender dos pais assim como é fundamental que os pais saibam que podem cuidar dela para que esta relação aconteça da forma mais harmoniosa e para que a criança tenha verdadeiramente espaço para crescer e para se desenvolver com toda a maturidade em cada fase da sua vida.

Mas, para isso acontecer os pais não podem ter medo de alimentar essa dependência nos seus aspectos saudáveis, ao mesmo tempo que não podem ter medo de saber que são eles os responsáveis por guiar e orientar os filhos.

Hoje em dia também temos algum receio da noção de hierarquia e parece haver uma certa tendência para pensar que, quanto queremos respeitar os nossos filhos e dar-lhe espaço para se descobrirem enquanto pessoas e indivíduos precisamos de deixar de lado a hierarquia e de os aceitar como iguais. Mas os filhos não são iguais a nós, uma criança não é um adulto em miniatura, apesar de muito adultos serem crianças grandes. As crianças têm necessidades diferentes das dos adultos e uma necessidade fundamental é a de se sentirem guiadas, cuidadas, orientadas. Porque só assim podem manter o seu instinto de apego que é justamente o que lhes permite sentirem-se seguras. Ao mesmo tempo que também facilita muito a tarefa dos pais porque as torna mais fáceis de orientar.

Para Neufeld o grande propósito da educação é permitir que a criança cresça sem precisar de se defender demasiado, mantendo um coração aberto. As crianças são seres frágeis, justamente por causa dessa sua necessidade de se sentirem seguras e protegidas pelos pais, as palavras e o comportamento destes têm um impacto enorme sobre os seus sentimentos. É mais fácil ferir uma criança do que um adulto e quando uma criança é ferida isto também tem mais peso do que num adulto.

Porque a criança nasce totalmente predisposta a estabelecer esta relação de apego e porque precisa de preservar esse instinto que lhe diz que são os adultos que cuidam de si as pessoas mais indicadas para a proteger e manter segura, ela irá usar tudo aquilo que for preciso para se defender e proteger esse instinto, mesmo que isso implique ignorar os seus próprios sentimentos. E assim o coração começa a fechar-se aos poucos, porque quando ignoramos os nossos sentimentos também não podemos ligar aos dos outros. E podemos mesmo afirmar que esta será a razão principal para tantos problemas que acontecem no mundo hoje em dia: a incapacidade de ter em conta os sentimentos dos outros, a falta de empatia que acontece quando o nosso coração já se fechou demasiado.

Acontece que este instinto de apego também torna a criança vulnerável porque a faz querer ligar às outras pessoas e faz com que precise de se sentir importante para aqueles que são importantes para si. E se essa vulnerabilidade for demasiado grande para que a criança a possa suportar então este instinto terá mesmo que ser ignorado e desligado. E aí temos uma criança com o coração completamente fechado e a quem já muito dificilmente conseguiremos chegar.

E só uma criança com o coração aberto é que pode ser facilmente orientada. Só uma criança com o coração aberto é que não tem medo de se explorar e de reconhecer e de aceitar os seus próprios sentimentos e de aprender a lidar também com os dos outros.

E o mundo precisa de mais crianças com o coração aberto porque só essas é que se podem tornar em adultos verdadeiramente maduros e capazes de levar uma vida preenchida e feliz mas também em harmonia com os outros.

Ainda há dias, na escola do meu filho, um colega lhe bateu com um balde na cabeça que deixou uma feridazinha e alguém lhe dizia que tinha de aprender a bater de volta para se defender. Mas a melhor defesa não é sermos capazes de atacar quem nos ataca, a melhor defesa é aprendermos a lidar com o que sentimos quando alguém nos fere e sermos capazes de acolher a nossa própria zanga, tristeza ou o que for mais adequado nessa altura. E isso só se pode aprender com um adulto de quem não tenhamos medo de depender e que não tenha medo de estar presente e de acolher esses nossos sentimentos.

Não precisamos de ensinar nenhuma criança a bater porque isso elas até já sabem por instinto, precisamos é de lhes dar espaço para não terem medo de ser feridas, para não terem medo de sentir e de manter o seu coração aberto mesmo depois de terem sido magoadas. Precisamos de lhe as ensinar que podem ser vulneráveis porque estaremos cá para as ajudar a lidar com essa vulnerabilidade. E isso só se consegue se estivermos também de coração aberto na nossa relação com elas, se também não tivermos medo de ser vulneráveis e se assumirmos que ter um filho nos coloca na posição mais vulnerável do mundo, porque ser pai ou mãe de alguém tem tanto de maravilhoso como de perigoso. Numa entrevista ouvi uma vez dizer o Ricardo Araújo Pereira que um dia olhou para as filhas e percebeu o enorme potencial de sofrimento que havia ali, porque ser pai ou mãe é mesmo isso: quanto tudo corre bem é maravilhoso, quando corre mal pode ser muito doloroso. Então precisamos também de aceitar essa vulnerabilidade em nós e de, mesmo com ela, não termos medo de assumir a liderança porque aquilo que mais facilmente fecha o coração de uma criança é não se sentir segura, protegida por quem deveria cuidar de si e isto tanto acontece quando as forçamos a fazer aquilo que ainda não conseguem fazer sozinhas como quando nos demitimos do papel de líderes e orientadores e as deixamos totalmente entregues a si mesmas nessa auto-descoberta que, só por si, já pode ser tão assustadora.