quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Obediência, liberdade e consciência

Hoje em dia fala-se cada vez em educação e em parentalidade e acredito que começamos a ganhar cada vez mais consciência de que existem formas diferentes de educar do que aquelas que conhecíamos e tomávamos como certas até agora. 
Nestes debates surge muitas vezes uma questão que é realmente importante e que me parece que nem sempre é bem compreendida: a questão da obediência. Por um lado temos pessoas que defendem que os filhos precisam de obedecer aos pais porque isso faz parte da boa educação e é essencial para o seu bom desenvolvimento, por outro temos aqueles que acham que a obediência faz parte dos modelos educativos ultrapassados e compromete até a capacidade da criança se descobrir a si própria e às suas vontades. Acredito que a verdade está algures no meio destas duas abordagens. 

Então vamos por partes. 

1. Conformismo  (de que já falei aqui)

Há alguns estudos interessantes que mostram como o ser humano tem necessidade de se sentir incluído num grupo. Nos anos 50, Asch fez umas experiências sobre conformismo social que ficaram célebres. (ver aqui vídeo) Nestas experiências havia um sujeito que estava numa sala com várias pessoas sem saber que estas estavam combinadas com os investigadores. Estas pessoas viam uma série de linhas e tinham que dizer, em voz alta, qual é que era igual à primeira que era mostrada. A resposta era óbvia mas tinha sido combinado que dariam todas a resposta errada. A grande maioria das pessoas que participou na experiência, começava por dar a resposta certa mas, ao fim de pouco tempo, acabava também por dar a resposta errada apenas para estar de acordo com os outros. Também acontece que a pessoa se chegava mesmo a convencer que o grupo estava certo. Um aspecto interessante desta experiência é que, se a pessoa tivesse um aliado, que desse também a resposta certa, na grande maioria dos casos, esta já seria capaz de manter a resposta certa.

Uma outra experiência ainda mais extrema foi pensada por Stanley Migram e levada a cabo, com várias pessoas de diferentes idades e estratos sociais nos anos 60 e 70. Nesta experiência os voluntários estavam numa sala com um examinador enquanto viam através de um vidro uma terceira pessoa que acreditavam ser também um voluntário. Era-lhes dito que estavam a participar num estudo sobre a forma de aprendizagem da outra pessoa e iam fazer-lhe algumas perguntas. Cada vez que a pessoa errava a resposta o analisador dizia ao voluntário para dar um choque à pessoa. E a voltagem dos choques ia sempre aumentando. Uma chocante maioria de 65% das pessoas, quando a ordem era dada pelo analisador, era capaz de dar choques até aos 450 voltes-  uma voltagem que poderia provocar a morte - mesmo quando a pessoa do outro lado gritava e se contorcia com dores. (ver aqui o vídeo)

Estas eram pessoas normais e há quem use os resultados destas experiências para explicar o que aconteceu no tempo dos nazis, por exemplo, em que pessoas aparentemente normais foram capazes de cometer os actos mais repugnantes. Porque estas experiências mostram como estamos dispostos a ignorar a nossa consciência e os nossos valores em nome deste sentimento de pertença e de integração. E mostram também que, se não estamos habituados a valorizar o que sentimos e a ser responsáveis pelas nossas acções é muito mais fácil desresponsabilizarmos-nos dos nossos actos e fazermos coisas que podem prejudicar os outros, desde que sintamos que a culpa não é nossa.

 E mostram também que, se não estamos habituados a valorizar o que sentimos a ser responsáveis pelas nossas acções é muito mais mais fácil desresponsabilizarmos-nos dos nossos actos e fazermos coisas que podem prejudicar os outros, desde que sintamos que a culpa não é nossa.


Estes estudos são por vezes citados pelas pessoas que defendem que não devemos querer crianças obedientes a qualquer custo. Acontece que é muito diferente obedecer a um pai ou uma mãe ou obedecer a um estranho. E porque é que é diferente? Porque são mecanismos completamente diferentes aqueles que estão em jogo nestes dois casos.

2. A questão do apego

Quando alguém obedece a um estranho ou a um grupo está a fazê-lo porque quer sentir-se parte desse grupo, precisa de sentir que pertence aquele grupo mesmo que para isso tenha de passar por cima das suas próprias crenças ou convicções. Ora isto acontece (como já expliquei aqui) muito provavelmente porque essa pessoa não teve durante o seu desenvolvimento uma boa noção de pertença, de acolhimento e de aceitação. Por isso não cresceu com a capacidade de defender os seus valores e sentimentos nestas situações até porque, a maior parte das vezes, não é fácil terem consciência deles. Assim, procurar este sentimento de pertença a um grupo é a forma de preencher essa ferida que ficou da infância. E estas feridas podem ser tão facilmente originadas por uma educação demasiado autoritária como por uma educação em que não haja autoridade absolutamente nenhuma.

Quando uma criança obedece a um pai ou uma mãe o ideal é que o faça justamente pelo motivo oposto: porque sabe que pertence e que é aceite e acolhida por aquelas pessoas.
Então aquilo que é importante é distinguir a obediência que vem do medo daquela que surge naturalmente apenas porque confiamos nos nossos pais. 
Talvez a palavra obediência seja demasiado forte e com algumas conotações negativas por isso, na verdade, podemos dizer que não queremos que os nossos filhos nos obedeçam mas que confiem em nós e se deixam orientar nos casos em que é necessário que o façam. 

Gordon Neufeld é um psicólogo Canadiano que gosto sempre de citar porque penso que construiu o modelo que mais facilmente nos ajuda a compreender todo o desenvolvimento infantil. O modelo deste autor gira, todo ele, em torno do conceito de apego. Neufeld explica que a criança nasce com um instinto natural para criar uma ligação de apego com as figuras que cuidam de si, que geralmente são os pais. E é com base neste instinto que devemos encarar toda a nossa ligação com a criança.

Então aquilo que é essencial é perguntarmos sempre, em relação a todas as nossas práticas parentais, até que ponto é que elas favorecem ou prejudicam este instinto. Porque se este instinto for posto em causa o que acontece é que quebramos a nossa ligação com a criança e isso irá limitar muito todas as nossas possibilidades de a orientarmos, guiarmos ou de nos fazermos ouvir. Sempre que magoamos a criança, sempre que não a respeitamos ou ignoramos esse instinto acabamos por ferir os seus sentimentos e, se isto acontece demasiadas vezes, a sua única protecção será fechar-se a esse instinto que lhe diz que deveria ligar-se a nós para não voltar a ser ferida. E sempre que isto acontece será muito mais difícil chegar ao coração dessa criança e por isso mesmo será também muito mais difícil que ela se deixe guiar. 

Porque o instinto de apego da criança também lhe diz que precisa de confiar nos seus pais e confiar implicar acreditar no que eles lhe dizem e pedem para fazer. É só a partir desse instinto que podemos fazer com que as crianças nos oiçam de verdade e confiem em nós o suficiente para fazerem o que lhes pedimos mesmo que isso não lhes agrade muito. 

E é importante perceber também que é através deste instinto que a criança pode encontrar a sua tranquilidade. A criança precisa de sentir que os seus pais são capazes de a proteger e orientar. Precisa de sentir que está em boas mãos para se sentir segura e isto implica aceitar que os pais sabem mais que ela e que por isso têm maior capacidade de fazer boas escolhas. Uma criança que não confie nos pais ou que não se sinta orientada por estes também não se se sente protegida e por isso será uma criança ansiosa. Porque a sua natureza lhes diz que precisam de encontrar protecção, para que a criança possa verdadeiramente descansar ela tem mesmo de confiar nos pais e de se sentir ligada a eles. Se isto não acontecer ela estará sempre num estado de alerta, de procura, de busca em que todo o seu organismo lhe diz que não pode descansar, não pode relaxar porque não é seguro fazê-lo. Isto não significa que essas crianças nunca questionem os pais, antes pelo contrário até: se sentem seguras e aceites é muito natural que não tenham receio de questionar, de resistir e de por em causa o que os pais dizem ou fazem mas também é verdade que sabem bem que a última palavra que vale é mesmo a dos pais, especialmente nas coisas que são verdadeiramente importantes. 

Então é importante percebermos que não podemos abdicar do nosso papel de guias se queremos que os nossos filho possam verdadeiramente descansar. Mas também é fundamental que saibamos que guiar nunca poderá ser forçar e é preciso que nos lembremos sempre que a única forma de guiar com eficácia é através do coração. Por isso precisamos de estar disponíveis para ouvir, escutar e acolher de verdade os sentimentos dos nossos filhos. 

3. Espaço para a auto-descoberta

E é importante também que saibamos que o facto de termos a obrigação de guiar os nossos filhos não nos dá o direito de passar por cima dos seus sentimentos e do seu direito de se descobrirem a si próprios como pessoas com gostos e opiniões próprias que podem ser muito diferentes das nossas. 
Por isso precisamos de guiar e orientar apenas naquilo em que é fundamental que o façamos mas sempre com espaço para que a criança, por um lado se manifeste acerca das nossas orientações - o que inclui acolhermos o seu choro, protestos, zangas como manifestações legítimas e autênticas daquilo que a criança está a sentir - por outro lado, dar-lhe espaço para fazer as suas próprias escolhas sempre que isso for possível nos casos em que sintamos que é válido fazê-lo. 

Precisamos também de dar aos nossos filhos algo que hoje em dia falta muito: espaço para brincar livremente porque é nesta brincadeira, livre que as crianças podem descobrir o seu corpo, as suas preferências e tantas outras coisas importantes sobre si próprias e sobre o mundo. 

E esta auto-descoberta só pode surgir se a criança se sentir segura, se sentir que pode explorar à vontade tudo aquilo que sente porque os pais estarão presentes para a ajudar a dar um significado mesmo aos sentimentos mais difíceis. 

Outro aspecto importante para a auto-descoberta passa pela nossa capacidade de espelhar o que a criança nos mostra: de sermos empáticos com os seus sentimentos e receptivos para com todas as suas manifestações. As crianças aprendem a ver-se através dos nossos olhos e quanto mais livre de julgamentos for esse olhar mais libertas elas ficam para descobrir quem verdadeiramente são, livres dos rótulos que tantas vezes é tão fácil colarmos-lhes mesmo sem querer. 

Com tudo isto ficará mais fácil para os nossos filhos descobrirem-se a si próprios e com essa descoberta de uma identidade autêntica e genuína será muito mais fácil crescerem como pessoas que são capazes de saber quem são, o que sentem e o que defendem mesmo nas situações mais difíceis. 

4. A empatia 

Outro aspecto essencial em relação ao estudo em que as pessoas davam choques eléctricos mesmo nos casos em que a outra pessoa gritava e se contorcia com dores é a questão da empatia. Precisamos que as crianças cresçam capazes de sentir empatia e de se colocarem no lugar do outro se queremos evitar que aconteçam novamente situações como as que a segunda grande guerra originou. Então a melhor forma de garantirmos que as crianças mantêm essa capacidade é cuidarmos mais uma vez do seu instinto de apego para que não se sintam feridas, para que não precisem de fechar o coração e de ter medo de sentir empatia e compaixão pelos outros.

Para sentir empatia precisamos, primeiro de não ter medo do que sentimos. Só assim podemos ser capazes de não ter medo de deixar também entrar os sentimentos dos outros, mesmo quando são fortes, pesados e difíceis de enfrentar. A única maneira de garantirmos isso nos nossos filhos é respeitando os sentimentos deles e algo que é fundamental que respeitemos é essa necessidade de sentirem seguros e protegidos por nós enquanto são crianças. 

5. A questão da liberdade

Alguns apologistas da parentalidade consciente criticam os pais que querem que as crianças obedeçam em nome da sua liberdade individual que não deve ser posta em causa desta forma.

Mas a maior liberdade que uma criança poderá ter é a de se sentir protegida e segura com as suas figuras de apego. É isto que lhe dá toda a liberdade necessária para não ter medo de descobrir o mundo e a si mesma. Para não ter medo de explorar dentro e fora de si própria porque sabe que, aconteça o que acontecer, descubra o que descobrir, os seus pais estarão presentes e serão capazes dea acolher, de a ajudar a dar sentido ao que descobriu e de a ajudar a assimilar e ultrapassar todas as descobertas difíceis sempre que for necessário.
A maior liberdade que uma criança pode ter é a de sentir que pode descansar nos braços dos seus pais e que pode sempre ser acolhida por eles seja qual for a situação em que se encontre. A liberdade de os saber sempre presentes e prontos para fazerem aquilo que lhes parece melhor e mais importante para o seu desenvolvimento. A liberdade de crescer a sentir-se amada, apreciada, acolhida e a sentir que pertence de verdade aquela família.

6. A questão da contra vontade 

Gordon Neufeld fala muito de um conceito importante na sua teoria: o da contra-vontade. Esta é uma tendência que a criança tem para se manifestar contra tudo aquilo que sente como sendo uma coerção por parte dos adultos ou de alguém mais forte que ela.

Esta contra vontade, explica Neufeld, surge porque a vontade da criança ainda é muito frágil e precisa de ser protegida para se poder desenvolver. Ele diz que esta é uma espécie de vedação que serve para proteger a plantinha que começa a surgir com as primeiras vontades da criança em desenvolvimento. 
Por isso é que por volta dos dois anos as crianças têm geralmente alguma tendência para responderem não a tudo e para se manifestarem contra tudo o que sentem que lhes querem impor, fazendo birras com mais frequência: porque nesta idade a vontade da criança começa ainda a despontar; aos dois anos as crianças começam a descobrir o mundo e a si próprias e começam a descobrir que têm preferências e opiniões e sentimentos mais fortes em relação a algumas coisas.
Mas isto nesta fase, ainda é tão frágil que a criança fica muito sensível a qualquer acção do adulto, que vê como muito mais forte e que poderia facilmente impor a sua vontade. Por isso reage muito fortemente a tudo o que possa ser sentido como a mais leve imposição.

Então precisamos de respeitar e compreender esta contra-vontade. Compreender também que, regra geral, quanto mais a criança se opõe e reage contra o adulto, mais fraca é a forma como sente a sua própria vontade, por isso precisa de a proteger.

7. A comunidade e o indivíduo 

Nas sociedades ocidentais temos cada vez um tipo de educação que procura promover o individualismo e a independência e há quase uma espécie de obsessão colectiva com a independência das crianças. Mas, a verdade, é que neste tipo de educação acaba muitas vezes por falhar a compreensão de que todos nós precisamos de nos sentir parte de um todo e quanto mais negarmos essa parte em nós mais fácil será a criança crescer com essa espécie de falha e ter necessidade de a procurar nos grupos fora da família, fazendo tudo o que for preciso para se sentir aceite por eles. 

Uma família onde seja valorizada a interdependência e reconhecida a dependência da criança, sobretudo nos seus primeiros anos, será uma família que terá mais hipóteses de criar crianças que se sintam integradas, reconhecidas e que, por isso mesmo, não terão tanta necessidade de se sentir aceites fora da família. O que, por sua vez, lhes permitirá mais facilmente manter os seus valores e fazer valer os seus pontos de vista em todas as situações de grupo. 

8. Conclusão 

O mais saudável para o desenvolvimento da criança não será um tipo de educação em que nunca nada é imposto porque isto poderá ser facilmente sentido pela criança como um vazio de apego, para usar a expressão de Neufeld. Este vazio de apego acontece quando a criança não se sente suficientemente protegida ou acolhida por aquelas que seriam as suas figuras de referência e de apego principal e poderá estar na origem de vários problemas de desenvolvimento, nomeadamente a
ansiedade que é tão comum nas crianças hoje em dia.

Mas uma educação em que tudo é imposto e em que se quer que a criança obedeça sem questionar também não será saudável pela mesma razão: porque põe também em causa o instinto de apego da criança ao fazê-la sentir que a sua natureza não é respeitada ou acolhida.

Aquilo que precisamos de fazer será encontrar algures o caminho do meio em que somos capazes de nos posicionar perante a criança sem receios de sentir que somos a sua figura de referência, somos alguém que é mais velho, mais capaz, que está mais avançado no caminho da vida e que por isso poderá fazer mais facilmente determinadas escolhas importantes mas, ao mesmo tempo, saber que precisamos de ter abertura suficiente para não sobrecarregar o seu espírito, a sua natureza e as suas vontades, dando-lhes tempo e espaço para que se manifestem e acolhendo-as o melhor possível, livres de julgamentos e com todo o nosso coração. 





2 comentários:

  1. Concordo com o que é dito, mas então qual a melhor forma de reagir à birra? Tenho um menino com 2 anos e meio e está nessa fase que refere no ponto 6, quando acontecem vou falando com ele num tom calmo mas nada parece surtir efeito sem ser esperar que passe...

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  2. Por vezes a única coisa a fazer é mesmo estar presente e esperar que passe, dar tempo à criança para se manifestar e ajudá-la a encontrar um estado de maior equilíbrio através da empatia e da nossa presença calma e o mais tranquila possível. Mas também depende um pouco do que causou essa birra, pode ler aqui mais sobre como lidar com isso: http://parentalidadecomapego.blogspot.pt/search/label/Lidar%20com%20a%20Zanga%20das%20crian%C3%A7as

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