sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Quando é que as crianças devem entrar na escola

Uma das perguntas que surge com mais frequência sempre que dou workshops ou palestras sobre parentalidade é a de qual a idade ideal para entrar na escola. Esta é também uma das questões que, mais frequentemente, traz pais à minha consulta: as dificuldades em lidar com a entrada na escola dos filhos e frequentemente também acho que é uma das que mais equívocos tem gerado. 

Gordon Neufeld, um psicólogo canadiano que admiro bastante, construiu um modelo muito completo do desenvolvimento infantil em que explica que o mais importante na vida de qualquer criança é a sua capacidade de estabelecer um apego saudável, seguro e que funcione, primeiro com os pais e depois também com outros adultos importantes na sua vida. E, dentro deste modelo, Neufeld explica que a forma como encaramos hoje em dia a escola e forma como fazemos os nossos filhos vivê-la pode estar a por em perigo essa capacidade que é essencial para que a criança possa crescer e desenvolver-se da melhor forma.

Este é um tema complexo e difícil de resumir num artigo de blog e de que também já falei aqui, mas procurarei descrever algumas ideias chave deste modelo e da forma como podemos usar alguns dos seus pontos mais importantes para criar filhos mais felizes e seguros. 


O conceito de orientação para os pares

Neufeld explica que todas as crianças têm este instinto essencial de se ligarem e apegarem aos adultos que cuidam delas. Esta relação de apego é fundamental e forma a base e a matriz para toda a vida futura da criança e é através dela que a criança terá a capacidade de crescer e de se desenvolver de forma saudável. Então, uma das coisas que precisamos de fazer em primeiro lugar é reconhecer que essa dependência que a criança tem com os pais existe, é saudável e cumpre um papel importante no seu desenvolvimento. Só a partir dessa dependência e só quando esta é reconhecida, aceite e até celebrada é que a criança poderá tornar-se verdadeiramente autónoma. E por autónoma entenda-se o ser uma verdadeira pessoa com uma identidade própria, não propriamente o ser independente, porque na realidade nenhum de nós o é e acredito que a felicidade está, em parte, em sabermos reconhecer essa nossa dependência que nos permite estabelecer relações e cuidar dos outros ao mesmo tempo que nos deixamos cuidar.

Acontece que, quando decidimos que uma criança pequena precisa de passar o dia inteiro na escola, sem nós e, muitas vezes, sem um outro adulto com quem possa construir uma relação de apego, podemos estar a por em causa essa dependência e a interferir drasticamente com os instintos dessa criança.

Neufeld explica que, na maior parte dos casos, antes dos 5 anos de idade a criança não consegue agarrar-se à imagem das suas figuras de apego principais quando está fisicamente separada delas. Pelo menos não por mais que um par de horas. Mas este instinto de apego é muito forte - tão forte que sabemos que no caso de crianças institucionalizadas que nunca tiveram oportunidade de formar um vínculo até diminuem muito as suas probabilidades de sobrevivência – por isso a criança terá de procurar estabelecer essa relação com quem está perto. E, na escola, geralmente quem está mais perto são as outras crianças. Quando a criança se apega aos seus pares isto quer dizer que irá ficar muito mais resistente a formar relações com os adultos, porque as crianças pequenas não têm capacidade de formar relações de apego com muitas pessoas e porque estes apegos passam a competir entre si. Neufeld explica que a relação de apego funciona como um íman e quando activamos um dos seus pólos para atrair um determinado tipo de relação, o outro pólo fica a repelir as relações opostas.

Acontece que o instinto da criança também lhe diz que ela só deve deixar-se orientar pelas pessoas com quem tenha uma relação de apego. Muitas vezes ensinam-se as crianças a não falar com estranhos mas, na verdade, a natureza certifica-se que as crianças não tenham muita vontade de interagir com estranhos através deste instinto de apego: a criança só obedece e só escuta de verdade as pessoas a quem está apegada.

Então, Neufeld explica que esta é uma das causas dos problemas graves de indisciplina que se vêem nas escolas hoje em dia: a partir do momento em que as crianças passam a orientar-se para os pares, passa a ser a opinião destes que importa e passa a ser este comportamento que querem imitar e também passa a ser aos seus pares que querem impressionar. Por isso a opinião dos adultos passa a ser muito menos importante e por isso também passa a ser muito mais difícil que estes se deixem orientar por eles. Podemos ver a gravidade deste problema nos nossos dias se repararmos que, por exemplo, os ídolos dos adolescentes são, hoje, eles próprios adolescentes também. Há uns anos atrás isto não aconteceria tão facilmente e é claro que um adolescente não poderá ser um exemplo de comportamento tão bom como o de um adulto, pelo menos como o de um adulto verdadeiramente desenvolvido.
Para saber mais sobre este tema vale a pena ver a palestra dada por Neufeld, aqui:Why Kids need us more than Friends

Como lidar com isto 

Adiar a entrada na escola - A coisa mais simples que podemos fazer para lidar com isto e para impedir que a tal orientação para os pares aconteça é não termos pressa de colocar os nossos filhos na escola. As crianças precisam mais de estar com adultos, com quem possam estabelecer relações, do que com outras crianças. Neufeld usa uma expressão muito bonita para falara da idade em que acredita que uma criança só está pronta para ir para a escola, ele diz que isto acontece quando ela já nos deu o seu coração. Dar o coração acontece quando a criança diz espontaneamente que nos ama, que gosta de nós e isto mostra que ela está pronta para se agarrar a esse amor mesmo quando está connosco. Mostra que esse amor já é suficientemente real para que possa servir-lhe de bússola, de orientação e de conforto mesmo quando não estamos presentes fisicamente. E, segundo Neufeld, isto dificilmente acontecerá antes dos 5 anos de idade. Antes disso a criança até poderá dizer que nos ama ou que gosta de nós, mas fá-lo-á mais como uma resposta ou por imitação. Quando a criança nos dá o seu coração isto acontece de forma totalmente espontânea e podemos ver que a criança o faz com toda a sua emoção e de uma forma bastante profunda. Então, só nesta altura é que ela estará verdadeiramente pronta para lidar com a escola e com separações diárias mais prolongadas.


Quando não podemos adiar a entrada na escola

Procurar escolas que se centrem no apego – um bom educador sabe que precisa de fazer com que as crianças se liguem a si antes de conseguir fazer o que quer que seja com elas e um bom educador sabe, instintivamente, que esta tem de ser a sua prioridade e que nem vale a pena tentar fazer mais nada enquanto não conseguir criar esta ligação especial com cada uma das crianças que tem ao seu cuidado.

Ajudar a transferir o apego – os pais, como figuras primárias de apego da criança, precisam de fazer a ponte entre a criança e a escola. Quando estamos a falar de bebés, é mais facilmente aceite  que a adaptação à escola seja feita de forma gradual e com poucas horas de cada vez. Mas com crianças mais velhas isto também é muito importante. É importante dar tempo à criança para ir conhecendo a escola e é importante que isto seja feito com a presença dos pais ou avós, quando estes são também uma referência para a criança.
O instinto de apego é também um instinto de proteccção, por isso, ele fica muito mais activo quando a criança está num sítio estranho e o que lhe diz este instinto é que, em situações potencialmente ameaçadoras, ela deve procurar a proteção dos seus pais ou figuras de apego. Por isso, se queremos uma transição suave, é essencial que os pais estejam presentes, algumas horas nos primeiros dias de escola, para que esse sítio possa tornar-se familiar e deixe de activar essa resposta de alarme na criança.
Depois é muito importante que os pais também saibam que a criança vai precisar de estabelecer essa relação de apego com o educador com quem irá ficar todo o dia. E, para que isso aconteça mais facilmente, é importante que eles actuem como uma espécie de ponte: a criança precisa de ver os pais em comunicação com o educador, para sentir que aquela pessoa é segura, precisa de ver que os pais e o educador se dão bem e que existe uma relação entre eles para que o seu instinto lhe diga que é seguro ficar com aquela pessoa e estabelecer uma relação com ela.
Muitos educadores não gostam de ter os pais presentes na sala durante os primeiros dias mas isto pode ser mesmo essencial, com crianças com menos de cinco anos, para que a transição seja feita da melhor forma e para que as crianças tenham verdadeiramente uma oportunidade de estabelecer uma boa relação com eles.
Nenhuma criança gosta de sentir que é deixada sozinha num lugar estranho com estranhos porque isso vai totalmente contra todos seus instintos e pode mesmo por em causa a sua capacidade de se apegar aos adultos que cuidam dela.
Neufeld diz que deveríamos criar rituais em que os pais e educadores pudessem conviver, na presença da criança e que acontecessem com alguma regularidade, para que esta se possa sentir verdadeiramente segura.

Limitar o número de alunos – nenhuma turma de crianças com menos de 5 anos deveria ter um número grande de alunos. Porque é essencial que o educador possa estabelecer relações seguras com cada um e claro que isso será tão mais difícil quanto mais forem os alunos.

Procurar escolas centradas na brincadeira - é essencial que as crianças tenham tempo para brincar livremente antes de começarem a aprender a contar ou escrever. Só assim é que o seu cérebro e a sua curiosidade natural poderão estar preparados para iniciar um período de aprendizagem intelectual que, idealmente, não deverá começar antes dos 6, 7 anos de idade.

Mudar a organização das escolas centrada na idade - na maioria das escolas as crianças estão apenas com crianças da sua idade e, na verdade, Neufeld  explica que isto não tem nada de natural. As crianças da mesma idade têm muito mais tendência para competir umas com as outras e criam muito mais tensão umas nas outras. Se as crianças puderem estar com crianças de várias idades os mais pequenos vão-se juntar naturalmente aos mais velhos e esta poderá até ser uma boa de prevenir o bullying de que tanto de fala hoje em dia. 

Limitar a exposição aos pares – Neufeld diz que as crianças precisam mesmo é de estar com adultos e muitas vezes estamos tão preocupadas em fazê-las socializar que, para além da escola, ainda passamos os fins de semana em festas de anos nessa ânsia de achar que as crianças precisam de conviver com outras crianças quando, na verdade, elas precisam é de estar connosco e com outros adultos significativos nas suas vidas. Se o convívio com os pares fosse uma boa forma de socializar, as crianças de rua e os membros de gangues seriam modelos exemplares de um bom desenvolvimento.
Isto inclui também pensarmos que, nas escolas, é importante que haja muito mais adultos no recreio, por exemplo e é importante que estes interajam com as crianças e não se limitem a intervir em situações de crise.

Manter a presença dos pais na sala- por parte dos educadores pode ser também muito importante manter viva a presença dos pais dentro da escola. Dizer a uma criança que chora porque a mãe nunca mais chega que faça um desenho para lhe dar quando ela vier, por exemplo, ajuda-a a manter o foco na re-união que irá acontecer no final do dia e ajuda-a manter viva a imagem desse amor que sente por ela o suficiente para aguentar a separação. 

Recolher a criança - Neufeld explica que é essencial recolher a criança depois de cada separação, isto serve para restabelecer a ligação e lembrá-la que essa relação de apego existe. É muito importante que o façamos de manhã, depois de a criança acordar - porque o sono também é uma separação - e ao final do dia quando vamos buscá-la à escola ou quando chegamos a casa. Para ajudar a criança a por o foco nessa ligação de apego. A primeira coisa que fazemos deverá ser sempre restabelecer essa ligação: deixar que a criança venha ter connosco, se for na escola, e dar-lhe algum tempo para se reaproximar enquanto mostramos que estamos presentes e totalmente disponíveis. E não ter medo de mostrar que também sentimos muito a falta dela e que também gostávamos de ter passado o dia inteiro juntos. 
Só depois dessa ligação se ter restabelecido é que a criança estará verdadeiramente pronta para ser orientada ou dirigida por nós. 


Existem estudos que mostram que, ao final do dia, os níveis de cortisol na corrente sanguínea de crianças do jardim escola começam a subir (quando deveriam estar a descer) mostrando que estão claramente em stress. 
Aquilo que digo, muitas vezes aos pais, é que colocar uma criança pequena na escola não irá prejudicá-la para o resto da sua vida mas precisamos de ter noção que o que estamos a pedir a essa criança que faça não é nada natural e vai contra todos os seus instintos por isso é muito importante que encontremos formas de tornar essa transição o mais suave possível. 
E sobretudo precisamos de não ter medo de assumir um papel de destaque na vida dos nossos filhos, precisamos de não ter medo que dependam de nós e de lhes mostrar que podem confiar em nós e que podem, como diz Gordon Neufeld, "descansar no nosso amor". 







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