quarta-feira, 24 de junho de 2015

Aprender a ser feliz

Estamos em época de exames, por isso, naturalmente, estes têm estado na ordem do dia e são motivo de conversa de pais e notícias de jornal. Felizmente começam a surgir muitas vozes a questionar a validade destes exames, sobretudo no caso das crianças mais pequenas, como é o caso dos alunos do quarto ano. Não sou a favor dos exames da quarta classe nem dos moldes em que são conduzidos mas, a verdade, é que o problema não está só nos exames mas em toda a atitude que cada vez mais temos para com as crianças e jovens e a sua relação com o ensino.

A verdade é que a motivação para aprender é algo que surge naturalmente quando tudo corre bem na vida de uma criança. As crianças são naturalmente curiosas e interessadas e querem descobrir e perceber o mundo que as rodeia. Claro que nem todas terão interesse pelas mesmas coisas e nem todas querem descobrir as coisas da mesma forma e nem todas absorvem a informação do mesmo modo. Mas, se soubermos procurar e dar-lhes espaço e as condições necessárias para que ela se manifeste, essa curiosidade está lá. Só precisa que a orientem de vez em quando e que a ajudem por vezes a saber como pode ser satisfeita, mas não precisa de ser imposta ou forçada.

O trabalho de Sugata Mitra - que fez algumas experiências muito interessantes com crianças em aldeias remotas do interior Indiano que nunca tinham visto um computador e que aprendiam a usá-lo sozinhas - demonstra bem isso mesmo: que a vontade de aprender e de retirar sentido do mundo é inata nas crianças e esta vontade pode ser reforçada ou apoiada mas é algo que, quando tudo está bem se manifesta naturalmente, desde que existam as condições necessárias para isso. Para saber mais sobre o trabalho interessante deste investigador pode ver aqui o vídeo da sua palestra vencedora do Ted Talks de 2013.

A segurança como uma condição fundamental para a aprendizagem 

É verdade que a vontade de aprender é algo natural nas crianças e jovens mas esta vontade precisa de algumas condições para que possa manifestar-se e, uma delas, é a segurança. A sensação de que estamos seguros é fundamental para que possamos aprender o que quer que seja. Do ponto de vista fisiológico sabemos que, sempre que estamos em estado de alerta - o que acontece quando não nos sentimos completamente seguros - o nosso organismo dá origem a uma série de reacções e de alterações fisiológicas que se destinam a permitir-nos combater as ameaças. Uma das coisas que acontece quando é despoletada uma resposta de stress é uma alteração ao nível da circulação no próprio cérebro: o sangue é desviado da zona do córtex pré frontal, que nos permite ter um tipo de pensamento mais racional, mais cuidado, mais do tipo intelectual, para a zona do sistema límbico que está mais associada ás emoções mas também aos comportamentos e reacções instintivas. Isto mostra porque é que, sempre que estamos em estado de alerta se torna muito mais difícil pensar de forma reflectida e cuidada sobre o que quer que seja.

Também por isso os estados de alerta ou de tensão reduzem a criatividade como demonstrou claramente uma investigação feita com dois grupos de estudantes universitários. A estes estudantes era pedido que resolvessem um labirinto daqueles que se dão ás crianças, do género do que está na imagem. Mas, apesar de os labirintos serem iguais, as instruções eram diferentes para os dois grupos: ao primeiro era pedido para preencherem o labirinto para que o ratinho pudesse chegar ao queijo que se encontrava no final e, ao segundo, era pedido que preenchessem o labirinto para que o ratinho pudesse fugir de uma coruja que o que queria comer.

No final eram aplicados aos dois grupos alguns testes de criatividade e a conclusão a que se chegou foi que o grupo que tinha resolvido o labirinto para fugir da coruja tinha uma pontuação, em média, 50% inferior à do outro grupo.

Então, este teste tão simples, mostra que a nossa criatividade fica mesmo mais limitada sempre que estamos a funcionar num modo de alerta. E a criatividade também é uma parte essencial da aprendizagem, pelo menos da aprendizagem genuína.

Para sermos criativos e inteligentes precisamos mesmo de nos sentir seguros. Porges é um investigador que elaborou aquilo a que chamou a teoria polivaga e, de acordo com esta teoria, nós estamos constantemente a avaliar o ambiente em que nos encontramos. Porges criou uma expressão, a que chamou neurocepção, para a nossa capacidade de, constantemente, sermos capazes de avaliar nos outros traços que nos fazem sentir seguros ou não. De um modo inconsciente o nosso sistema nervoso vai avaliando as expressões faciais, o tom de voz, o ritmo do discurso e outros sinais subtis que nos permitem perceber se estamos ou não seguros com aquela pessoa. Porges diz que estabelecer ligações é uma das grandes prioridades do ser humano e, por isso, o nosso sistema nervoso evoluiu de forma a encontrar formas cada vez mais eficazes de o fazer.

Então, se uma criança não manifesta a sua vontade natural de aprender, por um lado, poderá ser porque não se se sente tão segura quanto deveria. Principalmente quando falamos de crianças pequenas, no primeiro ciclo, em que esse instinto ainda deveria estar mais presente.

Para que possamos aprender o que quer que seja precisamos de estar receptivos às trocas com os outros, com as pessoas e com tudo o que nos rodeia. Para aprender precisamos de ser capazes de deixar entrar o mundo e, ao mesmo tempo, precisamos de estar seguros de que saberemos lidar com ele. Se isto não acontecer ficamos no tal estado de alerta que limita muito a nossa capacidade de fazer qualquer tipo de troca com as outras pessoas ou com aquilo que nos rodeia.

Um aspecto básico desta teoria e que tem vindo a ser cada vez mais confirmado por várias investigações é que, para nos sentirmos seguros, é essencial que nos sintamos acolhidos, aceites e amados. Então a prioridade das escolas deveria ser privilegiar as ligações e as relações antes de qualquer outra coisa. Uma criança para aprender tem que se sentir segura e uma criança só se sente segura se se sentir acolhida pelos adultos que tomam conta de si. Se conseguirmos que isto aconteça resolvemos uma boa parte de muitos dos problemas de aprendizagem que podem surgir.

Mas é claro que para este acolhimento ser verdadeiramente possível a escola e os professores também deveriam ter em conta que os alunos não são todos iguais, não gostam das mesmas coisas e não aprendem da mesma forma. E os próprios alunos deveriam ter espaço para descobrir isto por eles mesmos.

A maior parte das vezes as escolas focam-se demasiado em ensinar coisas aos alunos em vez de lhes darem espaço simplesmente para descobrirem de que é que gostam e o que é que sabem fazer. Isto é ainda mais importante nos primeiros anos, nas creches e jardins de infância em que as crianças passam demasiado tempo em actividades programadas e obrigatórias numa idade que deveria ser ainda muito mais dedicada à descoberta de quem são e ao estabelecimento de boas relações com os outros mas, principalmente, consigo próprias.

Quando procurei uma escola para o meu filho uma das coisas de que gostei muito foi de ver que existem escolas onde isto não é assim, onde a prioridade não passa por ensinar números ou letras a crianças que ainda precisam de descobrir o mundo dentro de si mesmas. Na escola do meu filho, na infantil, existem muito poucas actividades fixas e as crianças aprendem a gerir o seu tempo e a escolher aquilo que querem ir fazendo. Mas, mais importante que tudo, aprendem a conhecer-se a si e aos outros e é isto que é fundamental nesta idade, muito mais do que aprender números ou letras, aprendizagens que, nesta fase, servem apenas para estimular desnecessariamente o funcionamento intelectual e racional que não pode e não deve ser uma prioridade, muito menos em crianças pequenas.

Temos hoje infelizmente imensos jovens que sabem ler e contar, que até têm boas notas, por vezes, mas que não fazem a mínima ideia de que é que gostam, o que é que os preenche e acho que isto é um dos maiores fracassos na educação de uma pessoa.

O foco nas notas como uma fonte de insegurança e mal estar 

Por outro lado aquilo que vejo nos pais com demasiada frequência é que estão completamente focados nas notas que a criança tem e não no processo de aprendizagem em si. E, acontece que, nem sempre as notas são reflexo desse processo de aprendizagem e as notas nunca podem ser o mais importante desse processo.

Acho que isto acontece em parte por haver alguma insegurança da parte dos pais. Porque querem que os seus filhos tenham sucesso na vida, querem que sejam felizes e acreditam que para isso precisarão de bons empregos que as boas notas os ajudarão a conseguir. Mas sabemos que as coisas não são assim tão simples. Sabemos que para o sucesso é muito mais importante a inteligência emocional do que o Q.I. e sabemos que esta inteligência emocional nem sempre se reflecte em boas notas. 

O que vejo também muitas vezes é que os próprios pais estão inseguros no seu papel de pais e isso reflecte-se no desejo de que a criança tenha boas notas, porque se tiver boas notas, é sinal de que estão a fazer alguma coisa bem. A mesma coisa acontece quando vão ao pediatra e querem muito que este lhes diga que o filho é inteligente, que está bem desenvolvido, etc. Porque, no fundo, não se sentem seguros no seu papel e precisam destas confirmações exteriores.

Mas um pai ou mãe que esteja verdadeiramente presente na vida do filho não deveria precisar de informações ou avaliações de outras pessoas para sentir que está a fazer um bom trabalho. Cada criança é diferente, cada uma tem o seu ritmo, o seu próprio tempo e os seus próprios gostos e esquecemos-nos disso demasiadas vezes. Ainda ontem estava numa sala de espera em que a mãe de uma menina de 14 meses me dizia com desgosto que ela só dizia olá - mas depois afinal já dizia também mais duas ou três palavras - o que é perfeitamente natural aos 14 meses de idade, mas a mãe achava pouco. E constantemente comparamos as crianças umas com as outras porque já falam ou porque ainda não falam ou porque começaram a andar aos 11 meses ou só aos 16 e acabamos por criar quase uma espécie de competição que não permite perceber que cada criança é única. E cada criança tem de ser única para nós. Cada criança tem de se sentir única para nós. E tem de se sentir apreciada nessa sua individualidade. E só assim, com esse reconhecimento de que tem o direito de fazer as coisas ao seu próprio ritmo e de acordo com a sua própria natureza é que podemos esperar que uma criança tenha gosto em aprender. E se uma criança tiver gosto em aprender essa aprendizagem surge naturalmente, com tranquilidade e com facilidade. E as notas, na verdade, são o menos importante disso tudo. As notas avaliam apenas uma parte específica do conhecimento da criança e a sua capacidade de a debitar naquele teste ou exame, pelo menos quando é nisso que se baseiam. Mas as notas são mesmo o menos importante, o mais importante de tudo é percebermos se a criança aprende feliz, se está a construir uma boa relação com a escola, com as aprendizagens que lá faz, com os adultos, com os colegas e, mais importante de tudo, consigo mesma. Porque se tudo isto acontecer estão criadas as melhores condições para uma vida plena de felicidade e de sucesso. Do verdadeiro sucesso que é sermos capazes de viver bem connosco e com os outros independentemente do trabalho ou caminho que escolhermos.

Porque a verdadeira felicidade vem de nos sentirmos livres para sermos nós próprios, para fazermos as nossas escolhas, vem de sermos capazes de traçar o nosso caminho independentemente das avaliações exteriores. E as notas são apenas avaliações exteriores, são apenas o julgamento que outra pessoa - que nos exames nem sequer nos conhece - fez sobre o nosso próprio processo de aprendizagem. E isso não é mesmo o mais importante, na verdade isso não deveria ser nada importante.

Quando criamos crianças que vivem focadas nas notas aquilo que lhes estamos a dizer é que o que os outros pensam dela é mais importante do que aquilo que ela sente, ou do que aquilo que ela vive ou pensa. Estamos a dizer-lhe que o mais importante é o julgamento exterior, que esse conta mais do que as suas próprias vivências e opiniões. E estamos a dizer-lhe também que não importa o processo, mas sim o resultado. Porque nem sempre as boas notas significam que a criança aprendeu bem e nem sempre as más notas significam que não aprendeu nada. E esse não é de todo o melhor caminho para sermos felizes, para nos sentirmos bem.

Por outro lado quando nos focamos apenas nas notas acabamos também por estimular a competição. E hoje isto é algo a que sujeitamos cada vez mais as crianças e que lhes diz que precisam de ser melhores, que têm de passar à frente, em vez de as ensinar a aprender valores de colaboração e de entre-ajuda que são muito mais importantes e podem contribuir muito mais para sua verdadeira felicidade. Se eu me focar em ser a melhor estarei sempre em alerta, nervosa, ansiosa, com medo de não conseguir ou com medo que apareça alguém ainda melhor do que eu. E existem cada vez mais crianças que vivem deste modo a escola. Crianças de 8,9, 10 anos que sofrem com os exames e com os testes e que vivem com medo de não serem as melhores alunas. Estas crianças vivem estados de ansiedade desde muito novas que não as irão ajudar em nada no futuro. Mas se as ensinarmos que o importante não é serem as melhores mas sim aprenderem a colaborar, a estabelecer relações e a estarem bem consigo mesmas, isto é muito mais valioso que qualquer 100% que possam ter em qualquer disciplina. E a ciência mostra cada vez mais que o nos pode trazer felicidade, genuína e duradoura, são os valores de cooperação, de entre-ajuda, de solidariedade. Então se queremos que os nossos filhos aprendam a ser felizes devemos ensinar-lhes que não importa se são melhores ou piores que os colegas a matemática ou a português mas que importa se são capazes de criar boas relações com esses colegas e era muito bom que as escolas percebessem que essa colaboração é muito mais importante para o futuro de todos nós do que a competição pelas notas. Os quadros de honra, algo que era comum no passado, hoje parecem voltar a estar na moda e, para mim, não há pior exemplo de vida que possamos dar aos nossos filhos que o desejo de se sentir valorizado e destacado, apenas por ser capaz de ter um melhor desempenho que os outros colegas numa disciplina qualquer. Não há melhor caminho para criar seres humanos infelizes, ansiosos e até e egoístas que ensiná-los que estar num quadro de honra qualquer, feito apenas com base nas notas que são dadas pelos professores, é um objectivo importante na vida. Seria muito mais positivo para todos se, em vez dos quadros de honra as escolas criassem grupos de encontro onde todos poderiam falar, expressar-se, comunicar de verdade e aprender a gerir conflitos, problemas, relacionamentos. Seria muito mais positivo para todos se as escolas em vez de fomentarem a competição, percebessem que somos todos mais felizes quando nos sentimos bem como quem somos e onde estamos e quando sentimos que não precisamos de competir com ninguém. 

Seria muito mais positivo para todos se as escolas percebessem que em vez de darem cada vez mais trabalhos de casa aos alunos lhes dissessem que é importante brincar. Seria muito mais positivo para todas as famílias que os pais não precisassem de fazer trabalhos de casa com os filhos, como se isso fosse uma parte importante da relação entre eles, mas pudessem simplesmente estar juntos e brincar juntos, sem precisarem da desculpa da escola ou da preocupação com os trabalhos para estarem verdadeiramente com os filhos.

Uma vez houve uma mãe que me procurou porque estava com muita dificuldade em estudar com o filho, acabavam sempre por se zangar e discutir mas a mãe dizia que se não o ajudasse a estudar ele não tinha notas tão boas como podia ter com essa ajuda. As notas melhoravam com a ajuda mas a relação de ambos só parecia piorar, por isso disse-lhe que tinha de estabelecer prioridades e pensar no que seria mais importante: garantir que o filha de 11 anos tinha cincos a quase tudo ou manter uma boa relação com ele, mesmo que isso implicasse que os cincos descessem para quatros ou mesmo três? Para mim não restam dúvidas: as relações são sempre mais importantes, a inteligência emocional deve ser a nossa prioridade e não a inteligência dos números e das letras. É com bons relacionamentos que se constroem pessoas felizes não com cincos a matemática ou português.

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