sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Yoga e ansiedade nas crianças

Muitos pais falam comigo preocupados com os comportamentos ansiosos que vêem nos seus filhos. Porque, infelizmente, são cada vez mais os casos de crianças que sofrem com a tensão em que vivem quase diariamente e são cada vez mais os comportamentos que o demonstram como, por exemplo, dores de cabeça constantes como acontece com algumas crianças que conheço.

E, a maior parte das vezes, estes pais que chegam até mim que, na maior parte dos casos, são pessoas informadas, preocupadas e atentas já ouviram dizer que o yoga pode ser uma boa solução e muitas vezes esta é mesmo a recomendação do médico de família ou do pediatra que segue a criança. Como, além de psicóloga também sou professora de yoga e também já dei aulas de yoga a crianças, então muitas vezes estes pais vêm falar comigo na esperança de encontrarem no yoga uma solução para a ansiedade dos filhos. Mas  verdade é que fico sempre com sentimentos ambivalentes nestes casos, que vou tentar explicar porque surgem.

Benefícios do Yoga para crianças


É verdade que uma prática de yoga pode ter vários benefícios para uma criança. Por um lado, do ponto de vista físico, é importante que as crianças ganhem uma maior consciência do corpo e que aprendam o que podem fazer para o manterem saudável ao mesmo que podem também aprender a ter algum prazer com isso. Também é verdade que as crianças passam cada vez mais tempo sentadas e têm cada vez menos oportunidades de mexer o corpo e de entrar em contacto com ele e de explorar os seus limites, pelo que as aulas de yoga podem ser uma boa altura para o fazerem. Uma vantagem do yoga em relação a outros desportos é o facto de não ter a vertente competitiva que está presente nos outros e que pode ser uma fonte de tensão e de ansiedade para as crianças que, cada vez mais, já estão sujeitas a tantas pressões para serem capazes e para serem as melhores em tantas áreas da sua vida. O yoga pode ser também uma boa forma da criança entrar mais em contacto com as suas emoções e de aprender a adquirir algumas estratégias e ferramentas que lhe permitam geri-las da melhor forma. Através de alguns exercícios de respiração, de relaxamento e de concentração a criança pode aprender a libertar alguma tensão, a estar mais em contacto com o seu mundo interno a ser mais capaz de gerir os seus estados. O yoga pode também ajudar na capacidade de concentração levando a criança a perceber que é possível direccionar a sua atenção e a não ficar tão à mercê das distracções. Se o professor for capaz de transmitir à criança uma atitude de aceitação e de respeito pelo próprio corpo isto pode também ter um papel importante na auto-estima da criança e na criação de uma auto-imagem positiva. Todos estes benefícios têm vindo a ser comprovados por algumas investigações que vão sendo feitas nesta área.

No entanto não acho que o yoga deva ser encarado como a primeira solução para lidar com a ansiedade e insegurança nas crianças. Até porque, as crianças mais ansiosas, são justamente aquelas que terão mais dificuldade em retirar verdadeiros benefícios de uma aula de yoga.


As crianças vivem ainda muito em relação. Os adultos também mas, nas crianças, isto está ainda mais presente. Na infância os relacionamentos que formamos com as pessoas significativas são a fonte mais poderosa de experiências e a que mais contribui para moldar o nosso cérebro e a nossa forma de lidar com o mundo e connosco próprios. As crianças nascem totalmente predispostas para estabelecer relações significativas com as pessoas que cuidam de si. E nascem também com uma tendência inata para confiar nessas pessoas e para verem o mundo através daquilo que elas lhes mostram. Assim, as crianças são autênticos espelhos da forma dos seus pais estarem no mundo. Uma criança procura nos seus pais referências para a forma como se deve comportar, para a forma como deve agir, para a forma como deve lidar com as emoções e sentimentos. 

Os bebés quando nascem passam os primeiros meses num estado de fusão emocional com a mãe, isto quer dizer que, para além de precisarem muito da sua presença e da sua disponibilidade quase constante também acabam por ser um bom reflexo das suas emoções e daquilo que a mãe vai sentido. Se a mãe está ansiosa, por exemplo, os bebés demonstram muito rapidamente essa ansiedade passando a ter um comportamento mais agitado e com mais choro. Observações feitas com mães deprimidas mostraram que os bebés dessas mães apresentavam eles próprios um comportamento semelhante ao da depressão: mostravam muito mais expressões de desconforto de mau-estar do que expressões positivas, tinham episódios de choro mais frequentes do que os filhos de mães não deprimidas e tinham uma maior tendência para se tornarem bebés que mostravam muito pouca vontade de interagir. Isto demonstra que os bebés aprendem com as mães como devem olhar para o mundo e também como olhar para si próprios. Também do ponto de vista neurológico há estudos que mostram que o organismo do bebé tem tendência para se regular através do contacto com o organismo da mãe. Por exemplo, se o bebé está a chorar é muito mais fácil acalmá-lo se a mãe estiver com ele no colo e se mantiver ela própria calma. É como se o organismo mais maduro da mãe mostrasse ao bebé como pode passar de um estado de tensão e mal-estar para um outro estado diferente, de equilíbrio.

Por outro lado, a forma como respondemos aos nossos filhos também vai moldando o seu organismo. Por exemplo, sabe-se que os bebés que são repetidamente expostos a situações de stress - como nos casos em que são deixados a chorar sozinhos – acabam por ter os seus organismos inundados de cortisol, o que faz com o seu hipocampo perca a sensibilidade a esta hormona e deixe de ser capaz de avisar o cérebro que já foi produzida em excesso, o que quer dizer que, o hipotálamo se torna incapaz de desligar a produção de cortisol e a criança passa a viver com a resposta de stress ligada quase de forma permanente. Isto significa que esta será uma criança que terá sempre muita dificuldade em lidar com os desafios. Porque o seu organismo está já num estado permanente de sobrecarga que acaba por provocar um desgaste e fazer com que lhe sobre muito pouca energia extra para lidar com desafios.

Sobretudo durante os primeiros dois anos de vida, o cérebro das crianças está em constante formação. Nesta altura são perdidas e criadas milhares de ligações neuronais. É como se a criança, durante estes dois anos, estivesse a tentar perceber em que tipo de mundo irá viver e tentasse adaptar-se o melhor possível a este. Isto quer dizer que através das experiências que os pais proporcionam ás crianças, ela vai moldando o seu  organismo e o seu cérebro de forma a criar determinados padrões. E estas experiências incluem não só a forma como os pais respondem às suas necessidades mas também a forma como vê os seus próprios pais a lidar com as emoções. As crianças aprendem mais por imitação do que pelo que ouvem e, sobretudo nos primeiros tempos de vida, elas são peritas a sentir mesmo o que não foi dito. Nos dois primeiros anos a criança usa principalmente o lado direito do seu cérebro que está ligado ás emoções e, só a partir dos dois anos de vida, com o desenvolvimento da linguagem é que a criança começa a ser capaz de usar o lado esquerdo que lhe permite racionalizar, analisar e interpretar de forma  mais elaborada o que sente. Isto quer dizer que, nestes primeiros dois anos de vida, criança absorve muita coisa e faz muitas aprendizagens apenas através daquilo que sente com os pais.



Então, quando penso em crianças ansiosas, inseguras ou com alguma dificuldade em lidar com as situações da vida, é inevitável pensar que isso estará, de algum modo ligado ás experiências que viveu com os seus pais. E, se é verdade que os primeiros dois anos de vida são determinantes no que toca a essa moldagem que vai acontecendo, também é verdade que, durante toda a infância continua a existir alguma permeabilidade que permite à criança alterar esses padrões que foram criados. Também é verdade que esta capacidade de alterar esses padrões se mantém até na vida adulta mas, acontece que, na infância, esses padrões ainda não estão tão consolidados o que facilita essa alteração.

Uma das formas mais eficazes de alterarmos os nossos padrões de funcionamento é através das relações que estabelecemos com os outros e criam determinadas experiências dentro de nós, que nos fazem segregar hormonas e neuropéptidos – substâncias que segregamos em função daquilo que sentimos e que têm o poder de influenciar e de alterar a nossa fisiologia. E, se isto é verdade ao longo de toda a vida é ainda mais verdade durante a infância: uma altura em que estamos mais receptivos, mais predispostos a estabelecer relações e deixarmos-nos moldar por elas. Na meditação do tipo mindfulness, por exemplo, que tem vindo a ser comprovada como uma excelente forma de quebrarmos determinados padrões e de alterarmos o nosso funcionamento mesmo ao nível cerebral, o que acontece é justamente o facto de nos tornarmos capazes de estar verdadeiramente em relação connosco próprios e é isso que pode fazer toda a diferença na forma como encaramos a vida.

Então, isto quer dizer que, antes de decidirmos que uma criança ansiosa tem um problema e que precisamos de encontrar estratégias para a ajudar a lidar com ele, podemos pensar que ela está apenas a fazer aquilo que aprendeu connosco ao longo dos seus anos de vida e que, por isso mesmo, uma forma muito eficaz de a ajudar a lidar com a sua ansiedade é aprendermos a lidar com a nossa.

Sem culpas, porque cada pai ou mãe faz exactamente o melhor que sabe fazer com os seus filhos e sem culpas porque apenas podemos dar aos nossos filhos aquilo que aprendemos a dar a nós próprios. Então, se queremos verdadeiramente quebrar o ciclo e ajudar os nossos filhos a lidarem da melhor forma com as suas emoções, precisamos primeiro de aprender a lidar com as nossas. Por isto, dou comigo muitas vezes a dizer aos pais que, em vez, de porem os seus filhos a praticar yoga deviam pensar em ser eles próprios a praticar. Porque, honestamente, se é verdade que as crianças ansiosas ou inseguras podem encontrar no yoga algumas ferramentas que lhes permitam lidar melhor com essa ansiedade, também é verdade que essas crianças aprenderam a sê-lo por causa de todas experiências que viveram com os pais. Então, acredito que a melhor forma de eliminar de vez essa insegurança ou ansiedade é modificar essas experiências.

Muitas vezes, justamente por causa dos nossos receios ou ansiedades acabamos por acreditar que são as pessoas de fora que podem ajudar os nossos filhos  quando a melhor ajuda é nós simplesmente estarmos dispostos a estar presentes, verdadeiramente presentes na relação que temos com eles. Então, muitas vezes os pais fazem o esforço de levar o filho a algum lado para fazer aulas de yoga, incluindo mais uma actividade nas suas agendas já tão preenchidas e atarefadas quando esse tempo seria muito mais bem empregue se o passassem com a criança, criando espaço e oportunidade para estarem verdadeiramente com ela.


A nossa presença, inteira, completa de corpo e coração é o melhor presente que podemos dar a uma criança. E, quando nos tornamos capazes de lhe dar essa presença de forma regular, com que ela possa aprender a contar, estamos a criar-lhe a possibilidade de crescer no verdadeiro sentido do termo. Essa presença dos pais tem um efeito terapêutico muito mais profundo e completo do que aquele que qualquer aula de yoga ou qualquer outra relação lhe pode proporcionar. Uma criança precisa, mais do que tudo de sentir a presença e a aceitação incondicional dos seus pais. É a falta dessa presença - que acontece, a maior parte das vezes, por causa das nossas próprias ansiedades - que está na base de todas as inseguranças com que os nossos filhos lidam. Então, antes de procurarmos no exterior a correcção e a solução para esses medos ou dificuldades que os nossos filhos enfrentam, acredito que faremos muito melhor se as procurarmos em nós mesmos. E isto implica uma grande responsabilidade, sim, é verdade. Mas é uma responsabilidade sem culpa. É uma responsabilidade apenas de nos tornarmos conscientes do nosso poder enquanto pais ou mães de uma criança mas uma responsabilidade onde não entram culpas porque, enquanto pais, também já fomos filhos e fazemos apenas o melhor que nos foi possível aprender com os nossos pais. E sem culpas também porque é essencial que saibamos que é sempre tempo de mudar aquilo que ensinamos e transmitimos aos nossos filhos. Basta tomarmos consciência de que é tempo de lidar com as nossas feridas, é tempo de quebrar o ciclo e basta tomarmos consciência de que os nossos filhos estão sempre prontos, disponíveis para nos receber e para aceitar o que temos para lhes dar, sobretudo quando conseguem sentir que estamos realmente dispostos a tentar fazer diferente. 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Crianças Hiperactivas e Pais Ausentes

Hoje em dia fala-se muito de hiperactividade com défice de atenção (PHDA) um termo que se tem vindo a tornar cada vez mais comum, principalmente quando aplicado às crianças.

O diagnóstico 

Há vários aspectos importantes que é preciso focar sobre esta questão. Em primeiro lugar é importante falar da questão do diagnóstico e de como este é feito. Os diagnósticos, em psicologia, são feitos com base na DSM (Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders) que, com base na investigação e no trabalho de vários psiquiatras e psicólogos fornece uma lista dos sintomas mais comuns nas várias perturbações e dos critérios necessários para se decidir que alguém tem uma perturbação mental.

Então para se decidir que alguém tem uma perturbação mental é necessário que essa pessoa se encaixe nesses critérios que são definidos pela DSM. Mas, acontece que, em avaliação psicológica as coisas não são assim tão simples e, neste caso, uma das coisas que é preciso o avaliador decidir é se esses comportamentos são de facto adequados para a idade e para as circunstâncias da criança e, logo aqui, encontramos um certo grau de subjectividade que pode influenciar e muito o diagnóstico.

Por exemplo, estes são alguns dos critérios de diagnóstico que, diz o manual, devem persistir durante, pelo menos, 6 meses: dificuldade frequente em manter a atenção nas tarefas, com frequência parece não ouvir quando alguém lhe fala directamente, com frequência fala em excesso, com frequência se levanta e anda em actividades onde se esperaria que estivesse sentado, ou com frequência interrompe as actividades dos outros. Ora todos estes critérios podem ser interpretados de formas diferentes consoante a visão que tiver a pessoa que faz o diagnóstico acerca daquilo que será um comportamento esperado ou natural para uma determinada criança.

Por isso acredito que uma das razões que contribui para a fama desta perturbação é o facto de estar, muito provavelmente, a ser sobrediagnosticada incorrectamente. Porque as crianças têm cada vez menos tempo e espaço para serem crianças e, por isso é muito natural que tenham cada vez mais dificuldade em portar-se como os adultos gostariam que se portassem. Quando as crianças passam os seus tempos livres em casa, a ver televisão ou a jogar computador em vez de estarem na rua a mexer o corpo, a correr ou a jogar, quando as escolas muitas vezes nem sequer têm um recreio decente onde possam correr à vontade e pular e quando o tempo de aulas em que têm de estar sentadas a ouvir a cumprir tarefas é cada vez maior é muito natural que, uma boa parte dessas crianças, tenha dificuldade em estar sentada e em fazer o que lhe pedem e em ouvir o que lhe dizem.


Li uma vez uma notícia em que o presidente da sociedade portuguesa de pediatria dizia que estamos a criar uma geração de analfabetos do corpo porque as crianças têm cada vez menos tempo para brincarem livremente e para explorarem o corpo e os seus limites. Hoje em dia, a única oportunidade que a grande maioria das crianças tem para sentir o seu corpo é em actividades desportivas estruturadas que não lhe dão uma verdadeira oportunidade de o conhecer e explorar da mesma forma que acontece se lhes for permitido brincar livremente na rua ou em espaços amplos.

Então, isto gera realmente uma grande dificuldade em estar quieto, em ouvir, em obedecer, gera uma certa dose de mau-estar que vem de um corpo que está em crescimento e que precisa de espaço e de tempo para se mexer, para se descobrir, para se explorar à vontade sem outros limites que não os próprios que se vão descobrindo a cada dia. E estas crianças que dizemos que têm bichos carpinteiros e que preferem levantar-se e falar com os colegas do lado do que estar sentadas o tempo todo, neste contexto, apesar de tudo, são as crianças mais saudáveis. Porque aquelas que se limitam a estar caladas e a obedecer são as que já desistiram de si e do seu corpo. São aquelas que, não sendo hiperactivas, são muito provavelmente deprimidas. Mas as crianças deprimidas não perturbam os professores, não interrompem as aulas, não fazem perguntas a torto e a direito, não passam o tempo a falar e por isso não dão tanto que falar.

As causas 

Mas, por outro lado também acredito que haja realmente hoje em dia uma maior quantidade de crianças com PHDA,(que dito assim me parece um grande palavrão mas parece que as pessoas que sabem do que estão a falar usam sempre siglas e não quero ficar atrás) porque também há uma série de factores ambientais que, muito provavelmente, contribuem para isso. E quem diz crianças diz adultos também porque esta perturbação não é exclusiva das crianças.

Gabor Maté é um médico que escreveu um livro onde apresenta uma explicação muito interessante sobre esta perturbação. Este autor, que também sofre de défice de atenção, defende que esta é uma perturbação que tem origem na infância e na forma como as crianças se relacionam com os pais. Todas as crianças nascem com uma necessidade inata de estabelecer relações e de sentirem protegidas, seguras e cuidadas pelos pais (ou pelos cuidadores principais).

A neurociência mostra que a forma como os pais respondem às necessidades da criança molda a forma como o seu cérebro se desenvolve. Se uma criança é exposta a repetidas situações de stress o seu organismo começa a segregar quantidades anormais de cortisol e tem sido demonstrado que este cortisol em excesso na corrente sanguínea pode chegar a provocar uma diminuição de tamanho de algumas zonas do cérebro, nomeadamente do Cortéx Orbito-Pré Frontal (OFPC, em inglês, para usar mais uma sigla) que algumas investigações mostram que é consideravelmente mais pequeno em crianças que foram severamente negligenciadas nos primeiros anos de vida.

Então aqui a chave é esta ligação entre o desenvolvimento cerebral e a negligência que provoca um estado de stress ainda mais severo do que os maus tratos ou abusos, que já de si causam grandes perturbações. Porque tudo indica que não há nada mais grave para um cérebro em formação do que a falta da possibilidade de estabelecer relações com alguém e tudo indica que esta falta é ainda mais grave do os maus tratos que também já sabemos que podem ser muito prejudiciais. 

E é importante sabermos que esta negligência pode ser extrema, como a que acontecia em algumas instituições em que os bebés eram deixados sozinhos horas a fio sem terem ninguém com quem interagir ou pode ser mais suave quando, em casa, os bebés são repetidamente ignorados simplesmente porque os pais não têm disponibilidade para eles. As crianças nascem com uma necessidade enorme de estabelecer relações, esta necessidade é tão grande que, nessas condições de negligência extrema que eram típicas em muitos orfanatos da antiga união soviética, por exemplo, as crianças tinham uma taxa de mortalidade muito superior ao normal mesmo quando eram mantidas todas as condições de higiene e não faltavam alimentos e cuidados de saúde. Outro dos sinais desta negligência - para além de inúmeros atrasos físicos e psicológicos - encontrado na maioria destas crianças era o facto de não crescerem o que seria normal ou esperado para a sua idade mesmo quando comiam até mais do que seria normal (é relativamente comum as crianças em instituições comerem em excesso quando isso lhes é possibilitado). Estes atrasos no crescimento mostram que, quando a criança nasce num tipo de ambiente em que não lhe é permitido estabelecer relações o seu corpo desenvolve uma resposta de stress extrema, é como se partisse do princípio que o meio à sua volta não é seguro e por isso toda a sua energia tem de ser preservada para poder sobreviver. 

A resposta de Stress 

Stephen Porges, desenvolveu a teoria do Sistema Polivago, esta teoria explica que, desde que nascemos que começamos a moldar  o nosso sistema de resposta ao stress e quando o bebé ou a criança vivem em condições de stress extremo, é como se esse sistema de resposta ficasse moldado para estar ou num estado de alerta constante - despoletando a chamada resposta de luta ou fuga; ou, em casos ainda mais graves, o organismo entra numa espécie de shut-down, um mecanismo que herdámos dos répteis, os nossos ancestrais, que se fingem de mortos quando encontram uma ameaça. Este mecanismo de shutdowm que é o mais primito a que podemos recorrer e que, geralmente, é despoletado nestes casos mais extremos, pode ser o responsável por vários problemas, entre eles os atraso cognitivos e de crescimento que se encontram nestas crianças.

Mas é importante reter aqui que esta negligência não precisa de ser tão extrema para causar danos. 

Ela pode acontecer também em casa, na família, ou porque os pais estão demasiado envolvidos com os seus próprios problemas - como é o caso das mães deprimidas que tem sido bastante estudado - ou por uma questão de ignorância acerca das necessidades de um bebé ou, outras vezes, por receios que podem ter a ver também com a sua própria infância e que os impedem de estar verdadeiramente disponíveis e presentes na relação.

Porque as crianças nascem a precisar de estabelecer relações e, segundo explica Porges, quando o sistema de alerta é activado, fica desactivado o sistema de interacção social, o que quer dizer que se torna cada vez mais difícil estabelecer relações significativas porque a criança fica em modo de alerta. E aqui pode começar um ciclo vicioso em que se torna cada vez mais difícil estabelecer relações porque uma criança em estado de alerta é uma criança que chora mais e que se torna mais díficil de acolher e, quanto mais difícil é manter essa relação e fazer a criança sentir-se segura, mais intensas se tornam as tais reacções de stress que podem chegar até ao tal ponto de activar o tal mecanismo mais primitivo de shut-down em que a criança entre num estado de conservação em que apenas as funções mínimas essenciais para a sobrevivência serão mantidas.

É muito importante termos noção de que a criança nasce com uma grande necessidade de se sentir segura e protegida através do vínculo que procura estabelecer com os pais. Então tudo o que prejudique esse vínculo acaba por provocar um estado de stress e de alerta que, se for repetido várias vezes, pode ter consequências nefastas no desenvolvimento cerebral da criança. Sabe-se que é mais difícil a criança estabelecer relações de apego seguras quando a mãe está deprimida, por exemplo, porque uma mãe deprimida tem menos disponibilidade para falar com a criança e para estar presente quando ela precisa. Um dos aspectos fundamentais para se estabelecer um apego seguro é sermos capazes de responder aos sinais da criança, sermos capazes de estar em sintonia com as suas necessidades durante a maior parte do tempo. 

A criança e a mãe criam uma espécie de sintonia em que os ritmos fisiológicos da mãe ajudam a regular os do bebé. É como se o organismo mais maduro da mãe mostrasse ao bebé como deve comportar-se, ajudando-o assim a aprender a caminhar para a sua própria auto-regulação. Se a mãe não está presente, se não está disponível, se não tem nenhum contacto físico com o bebé, ou se está muito preocupada com os seus próprios problemas, esta sincronia não tem possibilidade de acontecer e o bebé precisa de começar a regular sozinho o seu organismo o que, para um bebé pequeno, é uma tarefa difícil e que obriga a despender muita energia. Por isso o seu organismo entende que não está num ambiente seguro e desencadeia a tal resposta de stress.

Isto é o que acontece também com muitos métodos de treinamento do bebé, principalmente aqueles que pretendem que o bebé durma a noite toda, porque afastam a mãe do bebé, impedem-na de ler os seus sinais e quebram essa sincronia essencial que precisa de existir entre os dois.
Então aquilo que acontece é que um bebé em stress, um bebé que não se sente seguro, não pode gastar muitas energias a desenvolver o seu organismo e por isso este desenvolvimento passa a estar limitado ao mínimo essencial. E, podem acontecer então essas alterações ao nível cerebral em que determinadas zonas não se desenvolvem porque, naquele momento, não são essenciais para a sobrevivência da criança.


E o que é que isto tem a ver com a hiperactividade? 

Gabor Maté, explica que esta zona do cérebro - o cortéx orbito pré frontal - é uma espécie de polícia sinaleiro do cérebro (outros autores chamam-lhe o controlador aéreo) o que quer dizer que é uma área que está ligada à capacidade de analisar, avaliar, seleccionar e estruturar a informação. Então, quando esta zona não se desenvolve totalmente, é natural que passe a haver algumas falhas neste mecanismo e torna-se muito mais difícil seleccionar a informação e manter a concentração nas tarefas como é típico do défice de atenção que pode ser, ou não, acompanhado pela famosa hiperactividade.

A hiperactividade pode ser uma consequência motora de não se ser capaz de seleccionar e de controlar minimamente os estímulos porque somos invadidos a cada momento, uma espécie de fuga para o desconforto e tensão que se geram quando não somos capazes de exercer este controlo interno, esta capacidade de auto-regulação. Mas, também acontece muitas vezes, que existe apenas o défice de atenção mesmo sem a parte da hiperactividade, ou esta pode ser também mais discreta, como uma tendência para roer as unhas, ou para abanar a perna constantemente, por exemplo.

Por causa desta deficiência no OFPC é que os medicamentos que geralmente se dão para esta perturbação, para espanto de muitos pais, são estimulantes, como café, por exemplo. Porque estas substâncias têm a capacidade de activar o tal polícia sinaleiro que, sem elas, é como se estivesse a dormir, para que este possa começar a fazer a tal selecção e organização.

Mas isto não quer dizer que a medicação seja a melhor solução porque, na realidade, esta só mascara o problema. Então aquilo que é preciso é, em primeiro lugar, compreender que uma criança pequena ainda tem o cérebro em formação por isso nem sequer faz sentido falar desta perturbação antes dos 3 ou 4 anos de idade. Depois é preciso também compreender que o nosso cérebro mantém uma grande plasticidade durante a infância mas também na idade adulta. O que quer dizer que a forma mais duradoura de alterar a sua estrutura não são os medicamentos mas as experiências que temos porque são estas que moldam realmente o nosso cérebro e o nosso sistema nervoso.

O que fazer? 

Em primeiro lugar então é necessária alguma cautela no diagnóstico e ter a certeza se não estamos apenas perante uma reacção à falta de espaço e de tempo para brincar e correr livremente bem como a um sistema de ensino que nem sempre é o mais adequado.

Depois, concordo com O Gabor Maté quando diz que deve ser a criança a decidir se quer ser medicada. Porque esta perturbação pode trazer consigo muito sofrimento, a incapacidade de estar presente mesmo nas brincadeiras, pode trazer consigo muitas dificuldades no relacionamento com os outros e é importante termos consciência de que a criança tem o direito de querer ver-se livre desse sofrimento. Então é importante termos noção de que a medicação pode ajudar a criança ser capaz de estabelecer melhores relações mas deve ser sempre encarada como uma ajuda temporária e nunca como uma solução permanente. Também é importante que a criança tenha verdadeiramente a possibilidade de decidir se quer ser medicada, procurando explicar-lhe as implicações deste gesto de forma a que ela as perceba e seja capaz de não se sentir diferente ou incapaz por querer recorrer a esta ajuda durante algum tempo.

Também é essencial que se perceba que, se esta é uma perturbação que tem a sua origem num sentimento de insegurança, então o que é mais importante para a reverter é encontra formas de dar à criança essa segurança. No caso de uma criança isto passa acima de tudo pela mudança na sua relação com os pais, pela construção de uma verdadeira sincronia com estes que lhe permita sentir-se ouvida, acolhida, aceite e segura na presença deles, pelo menos durante a maior parte do tempo. São as nossas experiências que moldam o nosso cérebro e as experiência mais marcantes acontecem na nossa relação com os outros, então, antes de qualquer outra coisa é aqui que devemos procurar soluções sobretudo para as crianças. Nunca é tarde para mudar a relação que temos com os nossos filhos, desde que haja vontade para isso.

Quando não é possível à criança obter essa segurança na relação com os pais, como acontece em famílias muitos desestruturadas, esta pode ser obtida com outro adulto com quem haja possibilidade de estabelecer uma relação significativa e que possa ter um papel activo e estável na vida da criança.

É verdade que práticas como a meditação ou o yoga podem também ter algum efeito porque podem ajudar a adquirir esta capacidade de nos auto-regularmos. Mas isto é válido sobretudo nos adultos. Porque nas crianças, todo o seu organismo, toda a sua natureza, está programada para obter esta regulação do contacto com os pais, da relação que estabelece com eles e esta deve ser a fonte primária e prioritária para a estabelecermos, tudo o resto são apenas pensos rápidos que podemos colocar nas feridas: até podem ajudar a sará-las mas nunca resolvem a causa.

Por último é preciso também termos noção de que, quando dizemos a um pai ou mãe que ele é responsável pela hiperactividade do filho, não significa que o estejamos a acusá-los de falta de amor. Sabemos que todos os pais amam os filhos e todos os pais fazem o melhor que sabem com as possibilidades que têm ao seu alcance. O que acontece é que os próprios pais muitas vezes também têm feridas e mágoas por resolver que afectam a sua confiança nos seus próprios instintos e na sua capacidade de lidar com os filho. Por isso, para termos a certeza de que não estamos a perpetuar um ciclo de sofrimento com os nossos filhos a primeira e a mais importante que temos a fazer quando nos tornamos pai ou mãe de alguém é cuidar das nossas feridas. Arranjar forma de deixá-las sarar, porque só assim poderemos ser realmente os pais que nossos filhos merecem.

Aqui fica uma palestra de Janeiro de 2015, sobre este mesmo tema, para quem preferir o vídeo: http://parentalidadecomapego.blogspot.pt/search/label/V%C3%ADdeo%20-%20palestra%20sobre%20D%C3%A9fice%20de%20Aten%C3%A7%C3%A3o%20e%20Hiperactividade