sábado, 22 de fevereiro de 2014

Ouvir com o coração


Há dias vi uma cena que me deixou de lágrimas nos olhos: uma criança, que não teria mais de 3 ou 4 anos, gritava pela rua fora - alto e bom som e com várias lágrimas à mistura - que não queria ir para a escola enquanto o pai o puxava pelos braços forçando-o a continuar a andar. Alguns metros depois o pai pára, larga os braços do filho, baixa-se ficando da altura da criança e olha fixamente para ele durante alguns instantes. Durante alguns segundos pensei que ia falar com ele, dizer-lhe qualquer coisa. Mas limitou-se a olhá-lo fixamente alguns instantes para depois lhe dar uma palmada no rabo e continuar a puxá-lo pela rua fora com a criança retomando o choro, repetindo ainda mais alto e com maior desespero que não queria ir para a escola.

Vi tudo isto pela janela de um rés-do-chão à frente da qual o pai parou e deu a tal palmada na criança. A minha primeira vontade foi abrir a janela e chamar nomes ao pai. Depois lembrei-me de um texto que li há pouco tempo e que dizia que por trás de cada pai ou mãe que maltrata uma criança, está um adulto que sofre. Mas, a verdade é que, olhando para aquele pai não foi o seu sofrimento – que acredito que exista – que me marcou mais, mas sim a sua insensibilidade ao sofrimento do filho. Acredito que essa insensibilidade venha do sofrimento porque já passou, sim. Sofrimento que há-de ter sido tão intenso em determinada altura da vida que aquela pessoa foi obrigada a fechar-se ao mundo exterior, a fechar-se aos afectos e às outras pessoas. Foi obrigada a construir um muro à sua volta onde só muito pouco entrará, provavelmente. Mas, o que me entristece mais é saber que esse ciclo de sofrimento, muito provavelmente, está agora a ser repetido com aquela criança. O que me entristeceu em tudo isto é saber que existem tantos pais que também sofreram por nunca terem sido ouvidos e que hoje, adultos, também se recusam a ouvir os filhos. A ouvir de verdade, com o coração, porque ouvir até ouvimos mas, com demasiada frequência,   desvalorizamos os sentimentos das crianças só porque são crianças.
Há dias também li que é importante não termos medo das lágrimas nos nossos filhos. É verdade sim. É importante sermos capazes de os deixar chorar quando é preciso. É importante sermos capazes de lhes permitir lidar com a tristeza, com a zanga, com a frustração. É muito importante que aprendam que todos os sentimentos são válidos e que podem lidar com todos, que podem passar por todos. Mas para o fazerem precisam de ser escutados, verdadeiramente escutados. Quando dizemos que as crianças precisam de aprender a lidar com a frustração isso não significa que as vamos deixar sozinhas nessa frustração, ou que devemos criar oportunidades para que se sintam frustradas. Significa que devemos valorizar os seus sentimentos. Se a criança expressa uma determinada frustração, ou zanga ou tristeza devemos dar-lhe ouvidos. Estar presentes, ouvir e espelhar essa emoção, mostrando empatia e mostrando que podemos aceitar, até acolher essa emoção da criança. Só assim os nossos filhos podem aprender que todos os sentimentos são válidos e só assim podem aprender a lidar com eles da melhor forma. E, neste processo aprendem também outra coisa muito importante: que os amamos independentemente dos sentimentos que têm ou que mostram e que estamos presentes para os ajudar a dar-lhes significado. E é só através desse amor incondicional que eles podem aprender a amar-se também a si próprios e a viver a vida de uma forma plena, com todo o seu potencial, sem precisarem de sentir que há partes de si que devem ser escondidas, ou modificadas.
Mas, validar os sentimentos dos nossos filhos e deixá-los lidar com eles não significa ignorar os seus pedidos. Também já li textos que defendem que, como é bom as crianças aprenderem a lidar com a frustração ou com a zanga ou tristeza então podemos deixá-los chorar um pouco, mostrando que compreendemos mas sem ceder aos seus pedidos. É certo que, muitas vezes, mesmo que quiséssemos fazê-lo, não podemos aceder aos pedidos dos nossos filhos. E aí sim, é importante dar-lhes essa escuta e ficarmos presentes na sua tristeza, na sua frustração. Mas, a verdade é que também precisamos de saber distinguir os pedidos que são verdadeiramente importantes. 
Podemos usar o exemplo deste caso, em que a criança não queria mesmo ir para a escola, ou o de de tantas outras crianças que ficam diariamente a chorar quando os pais os deixam na escola. Há quem pense que não faz mal deixá-los lá a chorar desde que mostremos que compreendemos os seus sentimentos, desde que falemos com eles e lhes digamos que sabemos que estão tristes e lhes demos espaço para sentir essa tristeza. Mas, sejamos realistas, pensemos num exemplo em que, em vez de ser o nosso filho que chora porque não quer ir para a escola é o nosso marido que está muito triste e que nos diz que precisa de passar o dia connosco. De que é quer serve dizermos-lhe que sabemos que ele está triste e que gostaria de ficar connosco se não fizermos absolutamente nada para aceder a esse pedido. Se formos nós a precisar de estar com alguém e a pessoa nos diz simplesmente: olha eu sei que querias muito estar comigo mas eu não vou estar contigo, por isso chora um pouco, eu sei que estás triste, faz-te bem chorar, eu oiço o teu choro um bocadinho mas daqui a pouco tenho de ir trabalhar. O que diríamos a essa pessoa? Pela minha parte, pelo menos, sei que não ficaria lá muito satisfeita. Neste caso, porque somos adultos, poderíamos até compreender que a pessoa tinha mesmo de ir trabalhar desde que ela se mostrasse minimamente disponível para não o fazer, ou seja, se percebêssemos que a pessoa queria mesmo ficar connosco mas não tinha como fazê-lo sem um prejuízo demasiado grande para si, continuaríamos tristes mas poderíamos não ficar tão sentidos. Acontece que uma criança tem muito mais dificuldade em perceber isto que um adulto. Para uma criança pequena, o acto de ser deixada na escola contrariada é sentido como um abandono e, mesmo que a mãe ou o pai lhe digam que compreendem o seu sentimento, continuam a mostrar-lhe com as suas acções que, apesar de compreenderem, não valorizam esse sentimento porque se vão embora na mesma. Uma criança pequena não percebe que o pai ou a mãe têm de ir trabalhar, só percebe que está a ser deixada sozinha num sítio onde não quer ficar, por muito que lhe digam que compreendem a sua frustração, isto não a elimina. E, mesmo que depois dos pais se irem embora a criança pareça bem disposta o resto do dia, não quer dizer que não ficou lá a ferida. A ferida de não se sentir ouvida, de não se sentir valorizada, de não se sentir respeitada nas suas vontades e sentimentos.

Então o que é podemos fazer? 

Nestes casos sermos empáticos sim, é importante. Mas uma boa parte dessa empatia, por vezes, também é aceder aos pedidos da criança. E se a criança nos diz que não quer mesmo ir para a escola, se a escola é uma fonte de sofrimento e angústia para ela então porque não tentarmos procurar alternativas para essa criança passar o dia? Sei que, enquanto sociedade, as coisas não estão organizadas para podermos aceder aos pedidos das crianças, pelo menos não aos deste tipo. Sei que os pais precisam de ir trabalhar e não podem simplesmente dizer ao patrão que vão tirar o dia para o passar com os filhos. Mas então é isto que está errado e não o pedido da criança. Porque a criança sabe que o natural seria passar muito mais tempo com os pais do que a maioria passa hoje em dia. Então o que precisamos de mudar, com urgência, é a forma como as coisas estão estruturadas nossa sociedade e, para isso, precisamos mesmo de começar a ouvir os nossos filhos.

Ouvir de verdade e aceder aos seus pedidos. Porque é que tantas vezes temos medo de ceder aos pedidos que nos fazem os filhos? Muitos pais pensam que, se deixarem o filho ficar em casa um dia quando ele não quis ir para a escola estarão a criar-lhe um mau hábito que dificilmente vencerão. Mas a verdade é que, em primeiro lugar, uma criança pequena (antes dos 5, 6 anos) não precisa verdadeiramente de ir para a escola, nós é que precisamos que vá. E, em segundo lugar, não será muito mais prejudicial o hábito de desvalorizar os sentimentos da criança? Não será muito mais grave o facto de ignorarmos os seus pedidos, de lhe mostrarmos que tem de ignorar os seus sentimentos, que tem de ir contra as suas vontades? Tudo depende de que como queremos criar os nossos filhos: se queremos que não sejam capazes de se escutar, que não aprendam a valorizar as suas emoções, os seus sentimentos, se queremos que não sejam verdadeiramente autónomos mas aprendam apenas a respeitar as convenções sociais, então sim é mais grave cedermos aos seus pedidos. Mas, se queremos adultos conscientes, livres, responsáveis, empáticos, felizes, capazes de estar em harmonia com as suas emoções e com as dos outros então é melhor começarmos a dar-lhes ouvidos logo desde crianças. E mostrarmos-lhes que a sua voz conta, que é importante, que tem poder. Sim, poder. Muitas vezes pensamos que as crianças não podem pensar que são poderosas porque quererão dominar os pais e nunca aprenderão a lidar com frustração: mas o verdadeiro poder vem de sermos capazes de nos escutar, de sermos capazes de respeitar as nossas emoções, sentimentos e de sermos capazes de agir de acordo com o que nos mostram. E, a lidar com a frustração, aprendemos sempre que nos permitem estar em contacto com esses sentimentos e agir de acordo com eles. Quando uma criança chora porque não quer ir à escola e lhe permitimos que não vá, não estamos a fugir da sua frustração: antes pelo contrário, estamos a dizer-lhe que é válida, que a vimos, que a aceitamos e que queremos respeitá-la. Isto não é o mesmo que deixar a criança fazer tudo o que quer. É claro que existem limites na vida e determinadas situações de que não se pode mesmo fugir. Mas, neste caso, trata-se de sabermos que o instinto da criança está certo: é natural uma criança querer ficar com os pais o máximo de tempo possível, é natural que resista a ser deixada ao cuidado de estranhos durante a maior parte do dia. Na verdade até é bom que assim seja. Então quando os nossos filhos nos dizem que não querem ir para a escola, devemos questionar-nos porque é que queremos tanto que vão. É certo que lhe pode fazer algum bem conviver com outras crianças – principalmente a partir dos três anos, já que antes disso as crianças não brincam verdadeiramente em conjunto – mas ainda mais certo é que uma criança com menos de seis anos ainda precisa de passar a maior parte do tempo com os pais. Muito mais importante que aprender a ler ou escrever é aprendermos a ser seres humanos inteiros, completos e capazes de estabelecer relações interpessoais satisfatórias e é com os pais, nos primeiros seis anos de vida, que as crianças aprendem isso. Então essa é a escola mais importante onde devem estar as crianças. A outra, aquela em que os deixamos tantas vezes todos os dias, é apenas para passar o tempo e só se torna necessária porque a sociedade não deixa que nos organizemos de outro modo, infelizmente.
Para nos convencermos de que é importante os nossos filhos irem para a escola começamos a pensar que precisam de aprender muitas coisas logo desde pequeninos e a maioria das escolas vende-nos essa ideia criando coisas tão ridículas como aulas de filosofia para bebés que existem mesmo, pelo menos numa escola que conheço, dirigidas a crianças com menos de 2 anos! Porque não queremos admitir que os nossos filhos só vão para a escola porque não temos outra solução. Num mundo ideal as crianças teriam tempo de crescer perto dos pais, pelo menos durante os seus primeiros anos de vida e também com outras crianças à volta de vez em quando. Num mundo ideal as crianças nunca precisariam de aprender nada, de um ponto de vista intelectual, antes dos seis ou sete anos de idade, altura em que começam a ter alguma maturidade para as primeiras aprendizagens. E, num mundo ideal, mesmo com essa idade as crianças teriam algum tempo para aprender e muito tempo para brincar e para estar perto dos pais. E ainda, nesse mundo ideal, os pais e mães poderiam trabalhar, o tempo que lhes fosse possível, sem terem que perder quase por completo a infância dos seus filhos. 

Mas, como este mundo ideal não existe, precisamos de nos convencer que a escola lhes faz bem, que as prepara para o mundo competitivo em que vivemos, que as pode ajudar a ser bem sucedidas. Quando na verdade o que lhes faz mesmo bem é estarem perto de nós, é crescerem a serem escutadas, vistas verdadeiramente, a serem acompanhadas de uma forma que na escola nunca será possível por muito boa que seja. Então a escola pode ser uma solução para os pais que precisam de trabalhar e, se for uma boa escola com pessoas dedicadas e que gostam de crianças – porque isto é o mais importante que pode haver numa escola e, infelizmente, nem todas as escolas têm só trabalhadores que gostam verdadeiramente de crianças – e que as respeitam, pode ser um sítio onde as crianças também crescem e aprendem a estar juntas. Mas, a verdade é que a escola, com crianças pequenas, será sempre uma solução para um problema que esta sociedade criou. E, apesar de cada criança ser diferente, nenhuma criança com menos de três anos deveria ser obrigada a passar todos os seus dias numa escola, por muito boa que seja. E mesmo com mais de três anos, as crianças não são todas iguais e, se nos dizem que não querem estar na escola, então precisamos de as ouvir porque é a sua forma de dizer que precisam de estar connosco e precisamos que saibam que está certo esse querer e que é importante escutá-lo, de verdade. 

E se não temos opção e precisamos mesmo de as deixar na escola para podermos trabalhar? 

Se não há como fugir a isto e, infelizmente, muitas vezes não há mesmo, então precisamos de encontrar formas de mostrar aos nossos filhos que eles estão certos, que os seus pedidos são legítimos e que gostaríamos muito de os satisfazer. Precisamos de encontrar formas de estar juntos o máximo de tempo possível e precisamos de não ter medo de lhes mostrar o coração: de os deixar saber que também sentimos muito a falta deles durante o tempo que não podemos estar juntos, que também gostaríamos muito de poder passar o dia com eles. Com uma criança que já compreenda bem a linguagem podemos falar, perguntar-lhe coisas sobre o dia dela, mostrar que queremos saber tudo, dizer-lhe que tivemos saudades, que gostávamos muito de estar mais tempo com ela. Com uma criança mais pequena, que ainda não fale, precisamos de encontrar formas de compensar essa ausência com muito contacto físico, muita presença e total disponibilidade durante todo o tempo que podermos estar com ela.