terça-feira, 23 de abril de 2013

In the Realm of Hungry Ghosts - algumas reflexões sobre o livro do Gabor Mate acerca das dependências

"A capacidade de uma criança lidar com o stress psicológico e fisiológico está completamente dependente da relação com os seus pais. Os bebés não têm a capacidade de regular os seus próprios aparelhos de stress e, é por isso, que podem mesmo stressar até à morte se nunca lhes pegarem ao colo.
O contacto com a mãe altera a neurobiologia da criança... As crianças que sofrem perturbações nas suas relações de apego não terão o mesmo ambiente bioquímico nos seus cérebros que as outras crianças bem cuidadas da mesma idade. Como resultado disso as suas experiências e interpretações do ambiente, e as suas respostas a este, serão menos flexíveis, menos adaptativas, e menos conducentes à saúde e à maturidade." - Gabor Mate - In the Realm of Hungry Ghosts (2010)

Neste livro, tocante e cativante, Gabor Mate demonstra que as bases para os comportamentos de dependência podem ser quase sempre encontradas na infância. É um livro em que o autor dá exemplos do comportamento de vários dependentes e explica como toda a sua história de vida terá contribuído para as suas dependências. Gabor Mate defende que uma infância sem a presença cuidadora e atenciosa dos pais altera permanentemente a fisiologia das crianças, afectando a sua capacidade de produzir endorfinas e dopamina (hormonas relacionadas com as sensações de prazer e bem-estar) tornando-as adultos com uma maior tendência a adoptar comportamentos de dependência. Gabor Mate explica que o combate às drogas tem sido um fracasso porque se foca nas substâncias e, tal como explica, não são estas as verdadeiras culpadas. Apesar de haver substâncias que podem provocar habituação quando consumidas regularmente isto, só por si, não é suficiente para explicar a dependência química. Dá como exemplos as situações de algumas doenças em que as pessoas são tratadas com opiáceos, até mesmo com morfina e, assim, que a causa da dor desaparece a grande maioria das pessoas pára de os consumir. O autor conta que alguns estudos com animais mostravam que, quando lhes eram disponibilizada uma droga, estes tinham tendência para a consumir até se tornarem dependentes. Mas o que estes estudos se esqueceram de levar em conta foram as condições particulares de stress que se geram quando os animais estão em cativeiro. Simon Fraser foi um psicólogo que se lembrou de ter este aspecto em consideração: criou um ambiente o mais natural e confortável possível para os ratos no seu laboratório e disponibilizou-lhes morfina que podiam consumir com uma substância doce (que geralmente atrai os ratos). O que verificou foi que não havia nenhuma tendência destes ratos para consumirem a morfina, mesmo quando esta lhes era injectada durante duas semanas, criando dependência, estes procuravam mesmo a custo evitá-la assim que lhes era possível fazê-lo. Estes estudos e outras observações feitas, por exemplo, na guerra do Vietname em que um elevadíssimo número de soldados consumia heroína mas deixava de fazê-lo assim que voltava a casa mostra que são as condições  de stress que provocam um consumo elevado de drogas mais do o poder das substâncias para causar dependência.
Para Gabor Mate o comportamento de dependência acontece não apenas com drogas, pode ser-se dependente de substâncias químicas mas também de compras, de relacionamentos, de comida, do jogo, etc.  Em todos estes casos o que se passa é muito semelhante: há uma alteração da fisiologia ao nível cerebral que limita a capacidade da pessoa lidar com o stress e de encontrar fontes de prazer e de satisfação mais saudáveis. E tudo isto começa a acontecer desde o nascimento: "A privação maternal e outro tipo de adversidades durante a infância resultem em níveis cronicamente elevados da hormona de stress, o cortisol. Juntamente com os danos ao sistema da dopamina do cérebro, o cortisol em excesso diminui centros cerebrais importantes como o hipocampo - uma estrutura importante para a memória e para o processar das emoções - e perturba o funcionamento normal do desenvolvimento cerebral de muitas outras formas, com repercussões para o resto da vida."
Observações feitas em orfanatos onde as crianças quase não eram pegadas ao colo e onde as interacções com os adultos se limitavam à satisfação das necessidades fisiológicas por vários adultos diferentes mostraram que, sem possibilidades de satisfazer um vínculo com um adulto cuidadoso, as taxas de mortalidade eram cerca de 30% superiores às que se encontravam em outras instituições, mesmo quando todas as necessidades fisiológicas eram bem atendidas e o nível de higiene elevado. Nestes orfanatos também se verificava que as crianças tinham atrasos no seu desenvolvimento e até o seu QI era inferior ao que seria normal para a idade. Estas observações mostram como a possibilidade de estabelecer um vínculo é essencial para uma boa saúde mental e quando não o temos, ou quando esse vínculo se estabelece de forma insatisfatória, existe uma grande tendência para que procuremos no exterior a compensação para esse equilíbrio que não pudemos ter interiormente. E essa compensação pode surgir de qualquer comportamento que nos leve a produzir hormonas, como as endorfinas e a dopamina, que nos façam sentir bem, felizes e em segurança, coisa que não podemos aprender a fazer por nós se alguém não nos mostrar primeiro. As toxicodependências ou outras dependências, na sua grande maioria, são apenas um reflexo de uma infância cheia de abandonos físicos ou psicológicos ou mesmo de maus tratos que alteraram a química cerebral de quem os procura. Por isso a única forma de combater esses comportamentos é tratando essas feridas, nos casos em que já existem, ou impedindo-as de acontecer criando todas as condições para que os nossos bebés e crianças se sintam sempre amados, protegidos e seguros do amor dos pais.