terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Primeiro princípio: a preparação para o parto, gravidez e parentalidade

Este é o segundo vídeo sobre os oito princípios da Parentalidade com Apego, tal como foram formulados pela organização Attachment Parenting International. Este fala do primeiro princípio que defende que deve haver sempre uma preparação para o parto, para a gravidez e para a parentalidade.


sábado, 14 de dezembro de 2013

Desculpas


Duas crianças, com cerca de dois anos e meio, brincam no parque infantil com alguns brinquedos espalhados no chão. Brincam lado a lado porque, nestas idades, as crianças ainda não têm a capacidade de interagir e cooperar de forma a que se possa dizer que estão verdadeiramente a brincar em conjunto. Estas crianças estão entretidas no seu mundo, brincando e comunicando ao seu modo até que uma delas decide bater com um carrinho de madeira na cabeça da outra que desata a correr para o pé da sua mãe a chorar.
Pode ter sido apenas para ver como reagiria o outro, para ver se o carrinho faria algum som a bater na cabeça do rapaz, para saber se se partiria ou porque estava realmente chateado com alguma coisa que se tivesse passado entretanto. O que é certo, é que as crianças, por vezes, fazem estas coisas e não o fazem  por maldade, porque, nesta idade ainda nem têm bem a capacidade de perceber o que isso é ou a capacidade de perceber bem o sofrimento do outro. Mas, neste caso, o pai do rapaz que bateu que apenas viu o outro menino sair a correr para o colo da mãe que lhe explicou que o seu filho lhe tinha batido com o carro na cabeça, pega no filho pelo braço e leva-o para o pé do outro que chorava dizendo com voz grave e autoritária: “pede desculpa ao Pedro, vá pede desculpa!” A criança não tinha vontade nenhuma de pedir desculpa, até porque nem percebia muito bem o porquê daquele alarido todo, mas o pai insiste: “Não vês o Pedro a chorar? Diz desculpa ao Pedro, vá! Estou à espera que peças desculpa!” Perante esta insistência, o coitado lá repete, esta palavra que o pai tanto quer que ele diga, em voz baixa, com um ar entre o assustado pela reacção do pai e pela confusão toda que se gerou de repente e o envergonhado pela atitude do pai e das restantes pessoas que olham para si como se, de repente, tivesse passado de coisa mais fofa ao diabo em figura de gente. Mas o pai ainda não ficou satisfeito com estas desculpas repetidas em voz baixa e pouco segura e continua ainda a insistir: “Isso assim não é nada, ninguém ouviu! Pede desculpa outra vez ao Pedro como deve ser, em voz alta!” A criança agressora lá repete a tal palavra ao agredido – agora num tom mais alto mas com um ar ainda mais humilhado - que não parece muito interessado em ouvi-lo, até porque já não lhe dói a cabeça e já está confortável no colo da sua mãe e, entretanto ficou também meio baralhado com aquela confusão toda. O pai, continuando a pegar na criança pelo braço e um pouco mais aliviado com o pedido de desculpas do filho, pede também desculpa à mãe do Pedro e leva-o para longe dali aproveitando o caminho para lhe dizer que não volte a fazer isso e que se bate em mais algum menino não volta a trazê-lo ao parque tão cedo.
Não assisti a esta cena mas já vi outras parecidas várias vezes. E fico sempre a pensar: o que é a criança aprende com este pedido de desculpas? Nada. Rigorosamente nada de útil ou positivo. O pai desta cena a única coisa que fez foi fazer com que a criança se sentisse envergonhada e humilhada sem sequer chegar a perceber bem porquê. Esta criança sentiu-se humilhada pela atitude do pai que lhe mostrou que fez algo de muito grave, de muito errado e que a colocou no centro de todas as atenções, ao mesmo tempo que a forçava a repetir uma palavra que ela nem percebia muito bem para que servia ou o que queria dizer. Porque desculpa é apenas uma palavra, não serve de nada para que a criança perceba as consequências dos seus actos. Depois desta espécie de humilhação pública em que todo o parque olhava para a criança à espera do tal pedido de desculpas a única coisa que o pai lhe disse é que não se podia bater e que, se o fizesse, deixaria de o trazer ao parque, transmitindo-lhe mais uma vez essa ideia ou sensação de que fizera algo de muito grave, de tão feio que o pai nem queria voltar a ser visto com ele em público novamente se esse comportamento fosse repetido. Esta atitude só traz à criança uma sensação de vergonha que é dos sentimentos mais nocivos que podem existir. Uma criança envergonhada, humilhada, é uma criança que sente que deixou de ser digna do amor dos pais e este é um sentimento muito corrosivo para uma criança pequena que precisa deste amor e que usa os seus pais como um espelho. As crianças aprendem quem são através daquilo que veêm reflecido nos pais. Uma criança que vê constantemente reflectido no olhar dos seus pais este sentimento de desaprovação de incompreensão é uma criança que se passa a ver de uma forma muito negativa. Se os pais veêm os seus comportamentos como um mal que precisa de ser controlado a criança passa a acreditar também que existe essa mal dentro de si e isso poderá ser muito prejudicial para o seu desenvolvimento, para a sua auto-estima e para a sua confiança em si mesma.
Então, nestes casos, qual seria a melhor forma de lidar com uma situação destas? Seria muito mais adequado se o pai tentasse mostrar à criança as consequências das suas acções sem a fazer sentir-se humilhada, sem a fazer sentir-se desajustada, sem a fazer sentir que existe algo de errado consigo. Porque na realidade, uma criança pequena que bate não o faz por maldade mas sim por incompreensão, incompreensão das consequências desse acto e do sofrimento que pode provocar nos outros. Então o pai poderia ter falado com ele, mostrado como o outro menino ficou triste e magoado, aproveitando para ajudar a criança a compreender as consequências dos seus actos. Poderia também explicar que não gosta de o ver bater nas outras crianças,  mas fazendo isto a partir de um lugar, dentro de si, que sabe que a criança não  o fez por mal, a partir desse lugar que ama o seu filho acima de tudo e que é capaz de o ver como um ser integralmente bom mas que, por vezes, faz coisas erradas.
Porque os nossos filhos aprendem a ver-se a si mesmos através do nosso olhar. A imagem que temos deles é exactamente a imagem que eles irão formar de si mesmos. Então é muito importante sermos capazes de lhes transmitir uma imagem positiva mesmo nas situações que gostaríamos de corrigir. É fundamental sermos capazes de transmitir aos nossos filhos este amor incondicional porque é através dele que eles aprenderão a amar-se a si próprios. Isto não quer dizer que precisamos de ter uma atitude passiva perante todos os comportamentos deles mas quer dizer que é muito importante sermos capazes de corrigir os comportamentos sem sentir que precisamos de castigar a criança. É muito importante olharmos para a criança como alguém que, por vezes, pode precisar de ser direccionado, pode precisar de alguém que lhe mostre alguns limites ou outros caminhos a seguir mas não podemos olhar para ela como alguém que tem uma natureza má e que precisa de ser controlada. Porque se for esta a imagem que temos deles será esta a imagem que eles construirão de si próprios. Então podemos aprender a corrigir ou a direccionar sem castigar, sem julgar. Precisamos de aprender a corrigir mantendo presente o amor que temos por eles. Porque os momentos em que erramos são justamente aqueles em que mais precisamos de nos sentir amados e aceites. Só assim estaremos verdadeiramente disponíveis para reflectir sobre esse erro e aceitar que errámos. 
Na verdade este pai, ao forçar o filho a pedir desculpas desta forma, provavelmente fê-lo porque se sentiu ele próprio envergonhado com o comportamento do filho, preocupado com o julgamento dos outros, com medo que os outros pais ou mães presentes pensassem que o seu filho era má pessoa ou que ele não o sabia educar. Então é preciso também estarmos sempre conscientes das escolhas que fazemos quando escolhemos educar os nossos filhos neste tipo de situações e é muito importante perguntarmo-nos sempre se agiriamos exactamente da mesma forma caso estivéssemos sozinhos e sem mais ninguém a ver.
Porque os nossos filhos precisam mesmo de saber que os amamos seja em que circustâncias for. E precisam de ver reflectido nos nossos olhos, através de nós e da forma como interagimos com eles que são seres humanos bons, capazes, competentes e dignos de ser amados mesmo quando cometem erros. 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Parentalidade com Apego - Oito princípios básicos

Uma descrição da importância da Parentalidade com Apego e dos oito princípios que estão na base desta abordagem, tal como foram formulados pela organização Attachment Parenting International, dedicada a defender e divulgar os benefícios desta forma de educar e de nos relacionarmos com os filhos. 




terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ser Mãe com Consciência


Uma conversa este fim de semana, em que alguém criticava o facto de uma colega de trabalho na Alemanha ser obrigada a trabalhar em part-time porque não podia pagar o preço altissímo de uma creche a tempo inteiro para a filha pequena - e em que eu defendi que o ideal seria que todas as mães ou pais de filhos pequenos pudessem trabalhar apenas em part-time, enquanto a outra pessoa discordava - deixou-me a pensar num dos princípios básicos da parentalidade com apego: o  princípio que defende que deve existir sempre uma preparação para a gravidez, para o nascimento e para a parentalidade. Fiquei a pensar bastante nesta questão e decidi escrever sobre ela porque chego à conclusão que, uma coisa que parece tão simples, na verdade acaba por ser até bastante negligenciada.

            
Em relação à gravidez hoje em dia já existem muitas observações e investigações que comprovam que os estados emocionais da mãe afectam o bebé, bem como tudo aquilo que come ou que ingere. Isto
não quer dizer que precisamos de passar uma gravidez sem o mínimo de stress ou de ansiedade mas quer dizer que precisamos de ser capazes de criar um ambiente adequado para aquela criança que, durante nove meses, precisará do nosso corpo para crescer e, por outro lado, precisamos também de ser capazes de cuidar do nosso corpo que estará a ser submetido a um esforço extra e que, por isso mesmo, também precisará de um pouco mais de atenção. Então isto quer dizer que devemos esforçar-nos por nos alimentar o melhor possível, por fazer algum exercício adequado ao nosso estado e por tentar viver da forma mais harmoniosa possível o que, mais uma vez, não implica eliminarmos todo o stress da nossa vida mas sim sermos capazes de lidar da melhor forma com os desafios que vão surgindo e encontrarmos um tempo adequado para nos nutrirmos e restabelecermos sempre que sentirmos que passámos um pouco dos nossos limites.
            Em relação ao nascimento também é muito importante encontrarmos forma de fazer com que este seja o mais harmonioso possível tanto para a mãe como para o bebé. Isto quer dizer que devemos tentar encontrar as condições necessárias para que este momento tão importante possa ser vivido da melhor forma o que, na nossa sociedade nem sempre acontece. Infelizmente o parto ainda é visto, muitas vezes, como um acto médico em que a mulher tem de estar numa posição passiva e em que os médicos têm toda a responsabilidade e todo o poder de decidir como é que as coisas se irão passar. É importante que haja aqui uma mudança de mentalidades, que deixemos de ver mulher que vai dar à luz como alguém que tem de se sujeitar aos procedimentos médicos sejam eles quais forem para passarmos a ver essa mulher como alguém capaz, competente, que conhece o seu corpo melhor do que ninguém e que tem um instinto que faz parte da espécie e que pode guiar e facilitar todo o trabalho de parto desde que lhe seja dada oportunidade de o seguir e de entrar em contacto com ele. É essencial também reconhecermos o recém-nascido com alguém com direitos e necessidades e respeitar a sua necessidade de contacto imediato com a mãe bem como o seu direito de não ser submetido a intervenções desnecessárias. Acredito que mudar a forma violenta como tantas vezes os bebés são recebidos neste mundo é um primeiro passo para tratarmos de facto todas as crianças com mais respeito e com a empatia que merecem e de que precisam para poderem crescer de forma harmoniosa e saudável.
            Em relação à parentalidade precisamos também de nos preparar a sério e de forma cuidada para esse acontecimento único e que mudará de uma forma irrevogável a nossa vida. Esta preparação não tem nada a haver com os cursos de preparação para o parto ou com a leitura dos vários livros que se encontram no mercado, ou com a consulta dos vários blogs e sites disponíveis na internet que tantas vezes os futuros pais ou mães consultam avidamente. Estes podem dar algumas dicas e informações relevantes mas a maior preparação de todas, a mais importante e a talvez a única que precisamos realmente de fazer é a de olhar para dentro de nós: olhar para dentro e perguntar-nos se queremos mesmo ter um filho e porque quereremos mesmo ter um filho. Muitas vezes esta questão nunca é verdadeiramente feita. Por vezes tem-se um filho apenas porque o companheiro ou companheira querem muito, ou simplesmente porque é o que toda a gente faz. E ter um filho é a decisão mais importante da nossa vida, é aquela que mudará todo o nosso futuro e aquela com que nunca poderemos voltar atrás.
       Já ouvi algumas mães dizerem que estavam ansiosas por voltar ao trabalho depois dos filhos nascerem, outras dizem que mal podem esperar pela primeira noite com os avós para voltarem a sair à noite com os amigos ou a ir à discoteca. A verdade é que uma mãe para quem o trabalho é o mais importante ou uma mãe que não está preparada para deixar certos aspectos da sua vida quando um filho nasce não deveria ter filhos. Pelo menos não deveria ter filhos naquele momento da sua vida. Por vezes deixamos-nos levar pela ideia de que o relógio biológico não pára e de que não podemos esperar até tarde para ter filhos mas, a verdade, é que os nossos filhos irão agradecer se esperarmos até termos viajado tudo o que queríamos viajar, ou se esperarmos até á altura em que a nossa carreira já esteja mais segura para a podermos por de  de parte durante algum tempo, ou até à altura em que a conta bancária já nos permita trabalhar menos. Não vale a pena ter filhos se não estivermos preparados para abdicar de muitas coisas por eles. E abdicar de muitas coisas não significa que iremos deixar de ter uma vida. Significa que, durante alguns anos, teremos prioridades diferentes, o que não quer dizer que não devemos cultivar outros interesses e outras actividades: antes pelo contrário, é fundamental preservarmos a nossa identidade e mantermos algumas actividades de que gostamos mas, sabendo sempre, que a nossa prioridade durante os primeiros anos de vida dos nossos filhos deverá ser acompanhá-los, vê-los crescer, dar-lhes tempo a eles e a nós também para estabelecer um vínculo profundo e seguro que os acompanhará a vida toda. Se não estamos prontas para isso, se achamos que esta dedicação não nos trará nenhum tipo de satisfação e que a realização que tiraremos disso não se compara à que podemos obter no trabalho, então devermos questionar-nos se queremos realmente ser mães. Porque nem todas as mulheres têm de se sentir realizadas como mães mas todas as mães se deveriam sentir realizadas com os filhos.

Algumas mulheres que já são mães, podem ficar com medo de olhar para dentro e chegar à conclusão que afinal talvez não devessem ter tido um filho na altura da vida em que tiveram. E este pensamento pode ser assustador por várias razões: porque nos pode fazer sentir culpadas, egoístas, irresponsáveis e porque, na verdade, já não há nada que se possa fazer. Mas, na verdade, há muito que se pode e deve fazer, sim. Em primeiro lugar é preciso acolher esses sentimentos, arranjar espaço para deixá-los existir em vez de os negarmos e tentarmos esconder dentro de nós. Depois é preciso olhar bem para eles e termos alguma compaixão por nós mesmas. Perceber que não faz mal ter esses sentimentos, que eles não nos vão tornar piores pessoas ou piores mães. Pensar que fizemos o melhor que sabíamos com o conhecimento que tínhamos na altura. Porque o que nos pode tornar piores mães é não sermos capazes de lidar e de aceitar os nossos sentimentos. Há muitas mães que passam uma vida inteira a fugir destes sentimentos e acabam por culpar os filhos, de forma inconsciente, por tudo o que acham que perderam na vida quando decidiram tê-los. E esta culpa que se vai cultivando dia após dia, mesmo que muito subtilmente,   é o pior veneno que pode haver numa relação. E é também um dos piores sentimentos com que uma criança pode crescer: a sensação de que não devia estar ali naquela família, de que não pertence aquela mãe ou aqueles pais.

Então, se realmente chegarmos à conclusão que não decidimos ter um filho de forma tão consciente quanto gostaríamos o que podemos fazer é simplesmente aceitá-lo, reconhecê-lo. Essa aceitação pode permitir-nos olhar para a criança que gerámos, talvez pela primeira vez, com um olhar totalmente livre e disponível para a acolher. Porque só podemos acolher verdadeiramente os nossos filhos depois de nos acolhermos a nós. E então podemos perceber que esta relação, apesar de tudo, pode sempre ser reparada. Nunca é tarde demais para construirmos uma relação mais próxima com os nossos filhos. E é essa proximidade, uma proximidade verdadeira que pode ajudar-nos a curar as feridas que existiam e que levámos tanto tempo a reconhecer e aceitar. Através dessa proximidade podemos perceber que a relação com os nossos filhos pode ser uma das melhores formas de sararmos as nossas feridas. Podemos perceber que o amor que sentimos por eles e o prazer de os vermos crescer e de estarmos verdadeiramente presentes nessa relação é muito superior a tudo aquilo que pensamos que podemos ter perdido quando decidimos tê-los. Se o permitirmos, se dermos uma oportunidade a nós mesmas, podemos perceber que essa relação pode ser mesmo a maior fonte de gratificação e de realização que temos ao nosso dispor. Basta querermos. Basta estarmos prontas para olharmos para dentro de nós primeiro, para podermos encontrar os nossos filhos depois.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Ausências - efeitos da privação da figura materna


A este respeito os efeitos da separação da mãe podem ser comparados aos dos efeitos de fumar ou de radiações. Apesar dos efeitos das doses pequenas parecerem insignificantes, eles são cumulativos. A dose mais segura é uma dose zero.” John Bowlby (1973) – Attachment and Loss. Volume 2 – Separation: Anxiety and Anger.

          Esta frase, escrita por Bowlby, no seu livro que se tornou, há muito tempo, um clássico da

Psicologia, refere-se a um estudo* feito com macacos bebés que eram separados das suas mães por períodos que variavam entre os dois dias e as três semanas. Estes estudos, feitos por vários investigadores e com mais do que uma espécie de macacos, confirmaram a ideia de Bowlby de que a presença da mãe é de facto uma condição essencial para o bem-estar e para o bom desenvolvimento de qualquer primata. Estes macaquinhos, mesmo quando continuavam no seu meio ambiente, com os outros macacos e a única coisa que faltava era a mãe (que era retirada desse ambiente durante alguns dias ou semanas) mostravam claros sinais de que essa falta os tinha perturbado. Durante as primeiras horas da ausência da mãe estes macacos choravam e gritavam como se chamassem por ela, depois, acabavam por ficar aparentemente mais calmos mas mostravam um comportamento muito mais apático e deprimido. Quando a mãe voltava, durante os primeiros dias, estes mostravam-se muito mais necessitados da sua presença, passando quase a totalidade do seu dia a tentar manter o contacto físico e a proximidade com esta e mostrando-se muito mais alerta e vigilantes com todo o tipo de acontecimento que pudesse indiciar que a mãe iria desaparecer outra vez. Mas o dado mais importante talvez, e ao qual a frase citada se refere, é que, passados alguns dias ou até semanas, mesmo quando já parecia que tudo tinha voltado ao normal, estes macacos continuavam a ter um comportamento diferente daqueles macacos que nunca tinham sido separados das suas mães. Só que este comportamento só se via em situações de desafio ou de stress: quando eram colocados objectos estranhos na jaula, por exemplo, estes macacos mostravam-se muito mais receosos do que os outros e tinham muito menos iniciativa de explorar esses objectos. E, quando havia algo fora do normal nas suas rotinas, estes macacos mostravam-se muito mais receosos, inseguros, necessitados da presença da mãe e também com muito menos vontade de explorar ou de correr algum tipo de riscos, quando comparados com os outros que nunca tinham sofrido com a ausência das suas mães.

          Bowlby acreditava que estas observações eram válidas também para os humanos. Na verdade ele descreve também muitas observações que foram feitas em que crianças pequenas precisavam ser afastadas da mãe, geralmente porque esta estava doente ou ia para o hospital para ter outro filho (coisa que nos anos 50, 60, podia demorar vários dias) e as crianças ficavam numa instituição ou com famílias de acolhimento. Nos casos em que as crianças iam para instituições, a experiência era sempre mais traumática, principalmente se a criança fosse sozinha, sem nenhum irmão. Aquilo que se verificava era um comportamento em tudo idêntico ao dos macacos: as crianças começavam por chorar muito, depois apresentavam um comportamento apático e deprimido. Quando voltavam a estar com a mãe o comportamento podia oscilar entre uma preocupação intensa com manterem-se perto dela a todo o custo, e uma vigilância constante de tudo o que pudesse indicar que esta se iria voltar a ausentar, até um comportamento mais ambivalente em que a criança parecia já não procurar a mãe e não querer a sua presença. Na verdade, este comportamento mais ambivalente era mais provável quanto maior fosse o tempo desta ausência e se a criança tivesse entre um e três anos. Segundo Bowlby, a partir dos três anos, dava-se uma alteração grande no comportamento da criança que parecia já muito mais capaz de suportar separações curtas com menos sofrimento.
O que faltou nesta observação das crianças humanas foi uma observação mais detalhada de como esta ausência as afectou mesmo passadas algumas semanas de ter acontecido. Mas, de acordo com o que é possível saber hoje em dia, através da psicofisiologia, tudo indica que estas ausências possam ter o mesmo efeito nas crias humanas e nos macacos, tornando-as menos resistentes ao stress e menos resilientes.

O sistema de resposta ao stress

             Sue Gerhardt, psicoterapeuta, explica que quando um bebé é repetidamente exposto a situações de stress – e para Bowlby a ausência da figura materna era das situações mais stressantes para um bebé - sabe-se que o seu sistema de resposta ao stress começa a libertar grandes quantidades de cortisol. O que acontece é que este cortisol permanentemente a flutuar no sistema em grandes quantidades acaba por danificar o hipocampo, fazendo com que os receptores de cortisol se desliguem e com que este se torne menos sensível e capaz de informar o hipotálamo que já se produziu cortisol suficiente. Isto quer dizer que esta resposta de alarme acaba por ficar permanentenmente ligada o que significa que a criança passará a viver num estado de tensão quase constante em que será muito mais difícil lidar com qualquer desafio em que qualquer situação nova se tornará muito mais assustadora, tal como acontecia com os macaquinhos que se mostravam muito mais receosos e inseguros para explorar o ambiente em situações novas.

         O comportamento da mãe depois da reunião

            A única coisa que estes investigadores encontraram que fazia alguma diferença na intensidade das mudanças que aconteciam nos macacos era o comportamento da mãe após a reunião de ambos: se a mãe rejeitasse a cria e a sua necessidade constante de conforto e proximidade, esta cria mostrava-se muito mais receosa. Nos casos em que a mãe se mostrava tolerante e receptiva a manter o contacto com a cria, estas continuavam a ter algumas alterações na sua capacidade de lidar com os desafios mas eram menos intensas.
Então, a lição a retirar daqui é que de facto a presença constante da mãe é essencial para o bom desenvolvimento de um bebé mas, se por algum motivo, esta tiver mesmo que ser interrompida, é muito importante a mãe estar disponível para reparar esse dano e para dar ao seu filho toda a segurança que ele pode ter perdido através de muito contato físico e de uma compreensão e aceitação das alterações de comportamento que este pode apresentar.

             Hoje em dia, muitas vezes, as obrigações da vida moderna fazem com que precisemos de nos ausentar muitas vezes, por vezes, essas ausências repetem-se diariamente quando o bebé é deixado numa creche ou infantário. Então é muito importante que sejamos capazes de reparar as marcas que essas ausências vão deixando e a forma de o fazermos é simplesmente escutando os nossos filhos, olhando para eles e deixando que nos mostrem de que é precisam para seja possível reparar a ligação. O elo que une uma mãe ao seu filho é muito forte mas, apesar de ser inquebrável, pode ficar fragilizado por separações prolongadas ou muito repetidas. Então a forma de repararmos esse elo é procurarmos mostrar que estamos totalmente disponíveis quando voltamos a estar juntos. E, com bebés e crianças muito pequeninas, a melhor forma de o mostrar é através de muito contacto físico que é essencial para o seu bem-estar.
Por vezes os pais não percebem porque é que o filho parece estar tão bem na escola e em casa chora muito mais ou faz tem comportamentos que parecem regressivos. Mas é muito natural que isto aconteça porque a criança, quando percebe que não tem alternativa e que a mãe não vai aparecer tão cedo acaba por adoptar um comportamento que parece mais conformado mas que não quer dizer que esteja alegre ou feliz. Isto não quer dizer que a criança esteja muito bem na escola e mal quando chega a casa, quer simplesmente dizer que, na escola, a criança percebe que não vale a pena chorar ou protestar porque a mãe não vai voltar. E, quando a criança volta finalmente a estar com a mãe, por vezes, pode ser difícil processar todas essas emoções que a ausência gerou e então surgem comportamentos que os pais nem sempre conseguem compreender.
Outras vezes também pode acontecer que, depois de uma ausência mais prolongada a criança mostre um comportamento agressivo para com a mãe. Bowlby via esta como uma consequência natural dessa ausência: a zanga da criança era a sua forma instintiva de fazer com que a sua figura de apego não voltasse a repetir essa ausência como se, ao castigá-la com esse comportamento agressivo quisesse impedi-la de voltar a ausentar-se. 
O mais importante é termos noção de que não há nada de natural na forma como vivemos a vida hoje em dia, longe dos nossos filhos, deixando-os ao cuidado de estranhos tantas horas seguidas. E, por isso mesmo, não é de estranhar que, muitas vezes, eles tenham comportamentos que também não nos parecem naturais ou que vemos como estranhos. O que é preciso é sermos capazes de nos sintonizar com essas pequenas feridas e estarmos totalmente disponíveis para as sarar. E a única forma de o fazemos é oferecendo-lhes a nossa presença e o nosso coração, totalmente, sem reservas, sempre que eles precisarem e sempre que estivermos juntos.

*Fico sempre num dilema quando cito estudos feitos com animais: por um lado não gosto de os citar como se fossem algo normal e aceitável, porque não acho que tenhamos o direito de usar e criar animais em cativeiro, como neste caso, apenas para serem estudados e receio que ao citar este tipo de estudos esteja de alguma forma a contribuir para a sua normalização. Por outro lado, é verdade que já foram feitos e deram um contributo importante para a psicologia e para o desenvolvimento de algumas teorias. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Co-Sleeping - Bebés em Relação


Quando mais leio sobre o desenvolvimento dos bebés mais me convenço de que estes não foram mesmo feitos para estar sozinhos. As investigações mais recentes acerca dos processos neurofisiológicos têm vindo a demonstrar de forma cada vez mais indiscutivel que os bebés nascem de facto programados para estabelecer relações significativas e que essas relações são tão essenciais à sua sobrevivência e a um bom desenvolvimento como o alimento. Na verdade, podemos até dizer que essas relações são mais importantes do que o alimento como o demonstram as observações feitas em orfanatos da primeira metade do século XX, onde as crianças eram criadas em ambientes assépticos, quase sem contacto com germes ou vírus porque não contactavam umas com as outras e tinham apenas o mínimo de contacto possível com os adultos e onde recebiam todo o alimento de que necessitavam mas que, no entanto, tinham taxas de mortalidade muito superiores ao que seria de esperar e às das crianças que viviam com as famílias, a maior parte das vezes, com ambientes muito mais contaminados e nem sempre com muito alimento. As experiências feitas por Harry Harlow com macacos recém nascidos, nos anos 60 também demontram que o contacto físico parece tão ou mais importante do que alimento. Este investigador, numa série de estudos polémicos em que macaquinhos recém-nascidos eram afastados das suas mães e criados em isolamento, demonstrou claramente que estes primatas estão programados para procurar instintivamente uma fonte de conforto físico tanto ou mais do que uma fonte de alimento. Nestas experiências – em que o bem-estar dos macacos foi claramente ignorado - Harlow, colocava dentro das jaulas dos macaquinhos um cilindro de arame que, em metado dos casos, estava revestido com um material de tecido macio e agradável ao toque. Dentro destes cilindros era sempre colocado um biberão de onde os macaquinhos podiam obter o leite necessário à sua sobrevivência. O que se verificou foi que os macacos bebés passavam sempre muito mais tempo junto dos cilindros de tecido do que junto dos de arame. E, sempre que se assustavam com um barulho ou qualquer outro estímulo, estes macaquinhos recorriam ao cilindro revestido de tecido e nunca ao de arame, mesmo quando este era  a sua única fonte de alimento. Estas experiências demonstraram claramente que a necessidade de contacto físico é tão importante ou até mais ainda do que a necessidade de alimento. Outra coisa que se observou com estas foi que, depois de crescerem nestas condições de isolamento, os macacos quando eram postos em contacto com outros macacos já não sabiam relacionar-se e, se chegavam a ter crias, eram totalmente incapazes e incompetentes como mães.
Outros dados indicam que os bebés nascem com o instinto de estabelecer relações: o facto de serem capazes de reconhecer a voz e o cheiro do leite da mãe apenas algumas horas depois de nascerem, o facto de mostrarem sempre uma preferência por imagens de rostos humanos, o próprio choro que tem como finalidade comunicar que algo não está bem e fazer com um adulto intervenha, os comportamentos de sorrir e balbuciar que rapidamente se começam a manifestar principalmente para com as principais figuras de apego, etc. 
Há também observações que mostram que os bebés começam muito cedo a ser capazes de ler as emoções, como a experiência da cara neutra desenvolvida de Edward Tronick, em que bebés de três meses já mostram reacções de angústia e aflição quando a mãe mantém uma cara que não demonstra nenhum tipo de emoção para com a criança e não responde às suas chamadas de atenção. Bastavam três minutos para estes bebés ficarem bastante aflitos quando viam que os seus esforços para trazer a mãe de volta à interacção não resultavam e estes demoravam ainda alguns minutos até voltarem a interagir normalmente quando a mãe voltar a uma atitude natural. Ver aqui o vídeo desta experiência

James McKenna, um antropólogo dos E.U.A., que desenvolveu e participou já em dezenas de estudos sobre o sono dos bebés, também defende que, nos primeiros tempos de vida, tudo indica que os bebés não estão preparados para passar muito tempo sozinhos. Este autor que observou dezenas ou centenas de pares de mães e bebés no seu laboratório do sono explica que, quando mãe e bebé dormem juntos apresentam padrões cerebrais e respiratórios muito semelhantes. Segundo este investigador, o bebé, que nasce com um sistema respiratório que está em formação durante os primeiros três meses de vida, precisa da presença da mãe para regular a sua respiração. Até aos três meses os bebés, com um sistema respiratório ainda imaturo, ficam mais sujeitos à ocorrência de apneia (paragens respiratórias) que, se o bebé estiver num sono profundo podem ser perigosas ao ponto deste não acordar e podem ser uma das causas para o síndroma de morte súbita (um síndroma em que os bebés morrem, quando estão a dormir, sem nenhuma causa conhecida e sem terem apresentado nenhum tipo de sintomas). Então McKenna explica que, quando os bebés dormem com as mães, têm geralmente um sono mais superficial e acordam mais algumas vezes por noite (adormecendo também mais rapidamente) o que pode representar justamente uma protecção contra o síndroma de morte súbita. As estatísticas da morte súbita em países onde as crianças dormem sozinhas e acompanhadas parecem confirmar esta hipótese: nos E.U.A. o indíce de morte súbita é de 2 por cada 1000 nascimentos, no Japão, onde a regra é os bebés dormirem com os pais, este indíce é de 0,2 por cada 1000 nascimentos e em Honk Kong, onde os bebés também costumam dormir com os pais, e de 0,1, por cada 1000 nascimentos.
Na verdade, na maior parte do mundo e durante grande parte da história humana, os bebés sempre dormiram com os pais. Em todas as sociedades mais tradicionais, como as asiáticas, tal como em todas as espécies de mamíferos, a tendência é para os bebés dormirem com os pais. Só na sociedade ocidental, e só recentemente é que passou a ser mais comum os bebés dormirem sozinhos do que na cama dos pais e a verdade é que, tudo indica, que estes não estão programados para o fazer.

Nas sociedades ocidentais existe, hoje em dia, uma tendência muito grande para que os pais se preocupem com a independência dos filhos. E, desde muito cedo, isso revela-se na preocupação de os porem a dormir sozinhos no quarto, de os deixarem adormecer sozinhos, de não responderem sempre ao seu choro, de não lhes pegarem muito ao colo, de não darem de mamar durante muito tempo, etc. Mas, a verdade é que cada vez mais estudos mostram que esta não é uma forma nada natural de criar um ser humano. Meredith Small, no seu livro Our babies Ourselves, descreve a relação que as várias sociedades humanas têm com as suas crias, e demonstra que, mesmo nas tribos onde a independência tende a ser mais valorizada é comummente aceite que um bebé é um ser totalmente dependente e essa dependência é reconhecida e encarada com toda a naturalidade, pelo menos durante os primeiros anos de vida. Em todas as sociedades, excepto na ocidental, é aceite que o bebé é um ser dependente da mãe e que essa dependência não deve ser desvalorizada mas sim aceite, reconhecida e protegida.


Winnicot um conhecido teórico do desenvolvimento infantil dizia que não existe tal coisa como um bebé isolado, um bebé só existe em relação. Mas, infelizmente, nas sociedades ocidentais, muitas vezes passa-se um tempo precioso da infância dos nossos filhos a tentar negar essa relação.

O co-sleeping é uma forma de reconhecer essa relação, essa dependência, de lhe dar espaço e tempo para existir. Dormir com os nossos filhos é perceber que os laços que nos unem a eles são algo que faz parte da cultura humana desde todos os tempos, é respeitar e honrar essa ligação física e emocional que não acaba quando pomos um bebé no mundo. É compreender que, mais do que o alimento físico, o bebé precisa de ser alimentado emocionalmente, precisa que lhe seja permitido alimentar-se também do corpo da sua mãe, do bater do seu coração, precisa que lhe seja permitido viver nesse estado de semi-fusão pelo menos ainda durante algum tempo, até que o seu sistema psicofisiológico amadureça o suficiente para poder funcionar por si e até que o seu coração se sinta capaz de guardar o amor da mãe e do pai mesmo quando está longe deles. Acredito que, numa cultura onde se passam tantas horas longe dos filhos o contacto físico que se pode ter com um filho enquanto dorme pode mesmo ser essencial para manter a ligação, aquilo que em inglês se chama bond e que podemos traduzir como o laço invísel que une os pais aos seus filhos. Sem um contacto físico quase constante nos primeiros meses e ainda bastante presente durante os primeiros anos, esse laço quebra-se muito facilmente e, quando o laço se quebra é difícil repará-lo.
James McKenna observou também no seu laboratório algo que muitas mães que dormem com os filhos descrevem: que há uma sintonia constante entre mãe e bebé, mesmo quando os dois dormem. Para para além do comportamento de mães que acarinhavam os filhos mesmo a dormir e que pareciam sempre conscientes da presença destes, para além da sincronia psicofisiológica que era possível observar entre ambos, este investigador também observou que havia uma tendência grande para que as mães acordassem exactamente alguns segundos antes dos filhos. Lembro-me de uma mãe que dormia com o filho me descrever isto quando eu estava grávida e de me ter acontecido exactamente o mesmo todas as noites que dormi com o meu filho em que ele acordava para mamar: acordava sempre uns segundos antes dele  e já sabia que ele iria acordar para mamar passado muito pouco tempo. Isto fazia com que lhe desse de mamar assim que ele acordava, o que fazia com que ele não precisasse de chorar nem ficasse agitado, tornando muito mais fácil que voltássemos os dois a dormir rapidamente. Isto só é possível porque esse laço, essa ligação que faz com o nosso organismo entre em sintonia é de facto algo natural e para o qual estamos programados. Mas é preciso que lhe demos espaço e condições para existir. De acordo com McKenna, se mãe e criança não estivessem a dormir juntos esta sincronização já não acontecia e não havia este sincronizar dos ciclos nem dos despertares.

Tal como diz Meredith Small, ao sobrevalorizar a independência dos bebés tudo indica que passamos por cima das suas necessidades e da sua programação biológica. E ao sobrevalorizar a independência na sociedade esquecemo-nos que só somos felizes em relação. Ninguém é feliz sozinho e as pessoas mais felizes são justamente aquelas que sabem reconhecer a sua dependência, são aquelas que mais procuram estabelecer relações e que o fazem com confiança e sem medo de reconhecer que o ser humano é um animal social, que não vive isolado do mundo. Jonathan Haidt, um investigador da área da Psicologia Moral, no seu livro, The Righteous Mind, cita uma série de estudos que demonstram que somos muito mais felizes quando nos permitimos fazer parte de um todo e não viver isoladamente, como este autor diz, o ser humano é parte macaco e parte abelha, um animal que vive em colónias onde todos trabalham para o todo e não em função de si próprios. Então, para criarmos bebés felizes, confiantes e saudáveis precisamos de reconhecer que os nossos filhos precisam de nós tanto quanto nós também precisamos deles. E assumirmos essa dependência mútua é o primeiro passo para um caminho de uma verdadeira autonomia que só é possível se formos capazes de a assumir como um percurso de interacção constante com o meio e com todos aqueles com quem temos uma necessidade vital de estabelecer relações e pontes para os seus mundos. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Cuidar dos filhos é também cuidar de nós


            Uma vez ouvi um senhor dizer que, desde que os filhos nasciam, passávamos a viver para eles e não pude deixar de ficar a pensar nessa frase e no desconforto que me provocou. É o mesmo desconforto que sinto muitas vezes quando oiço algumas mães dizerem que põem os filhos em primeiro lugar e só depois pensam nelas. São frases que não gosto de ouvir porque me lembram como já ouvi tantas pessoas adultas queixarem-se de que as mães lhes dizem constantemente que fizeram tudo por elas deixando implícita a mensagem – sempre pesada e desconfortável – de que os filhos devem, de alguma forma, pagar a dedicação que tiveram para com eles durante todos os anos em que foram pequenos.
            Por muito bem intencionada que seja uma mãe que diz que põe sempre os filhos em primeiro lugar isto significa que há alguma parte de si que não está a ser cuidada. Eu não ponho o meu filho em primeiro lugar pela simples razão de que, tudo o que faço por ele, estou a fazer por mim também. Sempre que cuido dele, sempre que faço alguma coisa por ele que precisa de ser feita tenho plena consciência de que, esse cuidar me traz muito mais a mim do que a ele. Vejo na maternidade um complemento daquilo que sou e não uma tarefa que tenho de cumprir por isso não me faz sentido dizer que o ponho em primeiro lugar porque, para o pôr em primeiro ou em segundo lugar teria de haver uma hierarquia que não existe: não sinto que faça sentido por as necessidades dele à frente das minhas porque são ambas igualmente importantes, nem mais nem menos. Claro que há coisas que são mais urgentes, porque ele é mais pequeno e dependente, há algumas necessidades que não podem esperar, algumas coisas que não podem ser adiadas mas isso não significa que as ponha em primeiro lugar, significa apenas que percebo que são mais urgentes.
Também sei que tenho a responsabilidade como mãe de cuidar das minhas necessidades e essas necessidades nem sempre estão relacionadas com ele. Sei que, sempre que deixar uma necessidade minha por preencher irei estar um pouco menos disponível, menos receptiva para as necessidades dele.
Mas, a verdade é que, muitas das necessidades dele também são minhas. Por exemplo, ele tem necessidade de estar comigo, de me sentir presente, mas eu também tenho necessidade de estar com ele. Ele  -como qualquer criança - tem necessidade de sentir que é uma prioridade na minha vida, que é valorizado por mim, que é amado – mas eu também tenho necessidade de arranjar formas de lhe demonstrar isso. Portanto nada disso é visto como uma tarefa, um objectivo que precisa de ser cumprido e que me irá roubar tempo ou espaço porque todo o tempo que tenho com ele também é um tempo que tenho comigo: também é um tempo que posso aprender a estar presente, a aceitar, a comunicar, a não julgar, a crescer tanto como ele cresce comigo.
Depois há as outras necessidades mais básicas como a de comer, a de dormir, de ter uma casa minimamente limpa e arrumada, etc,  e são essas que, por vezes, se podem tornar um peso mas, mesmo com essas posso aprender que não estou só a cuidar dele mas também de mim, porque também eu preciso dessas coisas todas e a verdade é que, desde que fui mãe, passei, por exemplo, a ter uma alimentação muito mais saudável.
Uma das coisas que ouvimos como mães é que precisamos de cuidar da relação do casal e, quase sempre se pensa que só o podemos fazer se nos afastarmos dos filhos. Mas, se os dois membros do casal conseguirem olhar para a parentalidade como uma oportunidade de crescimento, de auto-preenchimento e de auto-conhecimento não há necessidade de o fazer. Ser pai ou mãe também nos pode tornar melhor marido ou mulher porque, se deixarmos, nos pode tornar pessoas mais felizes, mais preenchidas e mais capazes de aceitar e apreciar verdadeiramente o outro. Os filhos ajudam-nos a crescer, a olhar para dentro de nós e isso só pode favorecer uma relação que já tenha bases sólidas de aceitação e respeito mútuo. 
Lembro-me da primeira vez que fui de férias com o meu filho e, uma parte de mim, pensava que não ia poder descansar de verdade porque estaria sempre a cuidar dele e lembro-me que vim muito feliz dessas férias porque me senti totalmente descansada, repousada e incomparavelmente mais feliz do que se tivesse ido sem ele! Nessa altura percebi que não é cuidar dos filhos que cansa, o que cansa é a rotina do dia-a-dia. Cuidar dos filhos não cansa absolutamente nada se tivermos consciência de que cuidar deles é também cuidar de nós. Porque cada momento com os nossos filhos é uma oportunidade para nos renovarmos, para crescermos, para nos conhecermos e para aprendermos a ser melhores como mães e como seres humanos.  

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Podemos confiar nos nossos filhos


Uma das coisas em que tenho vindo a reparar desde que sou mãe, é em quão pouco nós – adultos – confiamos nas crianças. Por vezes parece-me que a maioria dos pais olha para os filhos como um ser incapaz, incompetente, com má vontade e instintos selvagens que é preciso domar. Como mãe já ouvi muitas frases do tipo: não podes pegar sempre ao colo porque senão ele nunca mais te vai deixar fazer nada, não podes dar-lhe de mamar sempre que quer ou até quando ele quiser porque senão nunca vai querer deixar e isso pode fazer-lhe mal, não podes deixá-lo fazer tudo o que quer, tens que mostrar quem manda, tens que o ensinar a dormir sozinho senão nunca vai aprender, tens que o habituar a comer sozinho, etc. Todas estas frases traduzem essa visão de que a natureza das crianças é essencialmente de incompetência e de maus instintos que precisam de ser controlados.
Então, em primeiro lugar, a psicologia do desenvolvimento tem vindo a descobrir que, afinal, os bebés são muito mais competentes do que se pensava: um bebé recém nascido já é capaz de reconher a voz da sua mãe e o cheiro do seu leite, por exemplo. Há observações que mostram de que bebés com apenas 36 horas de vida, já são capazes de reconhecer a cara das suas mães e preferem olhar para estas do que para  a cara de estranhas. Desde que nascem que os bebés também se mostram capazes de imitar alguns gestos ou expressões como deitar a língua de fora quando um adulto faz o mesmo. Isto mostra que os bebés nascem já com alguma capacidade de estabelecer relações e que - mesmo que ainda se mantenham totalmente dependentes dos adultos durante os seus primeiros tempos de vida - são bastante mais competentes do que aquilo que muitas vezes temos tendência para achar. Quando estamos a olhar para alguém de quem gostamos muito as nossas pupilas dilatam e há também observações que mostram que, mesmo os bebés muito pequenos, já são capazes de responder à dilatação das pupilas no olhar da sua mãe. Tudo isto mostra que os bebés, apesar de dependentes, já nascem bastante preparados para estabelecer as relações de afecto que serão essenciais a todo o seu desenvolvimento. Por isso, o nosso papel, nesta fase é simplesmente o de reconhecer essa competência e dar-lhes tudo aquilo de que necessitam para que essas relações se possam estabelecer o mais harmoniosamente possível.
Esta desconfiança começa, muitas vezes, logo nos primeiros dias de vida quando o bebé chora porque precisa de colo e de estar em contacto com a mãe e a mãe se recusar a dar-lho por medo que fique dependente ou, como já ouvi dizer, viciado no colo. A questão é que os bebés quando nascem já sabem muito bem daquilo que precisam: precisam de mamar, de não ter frio nem calor, de estar confortáveis e de estar em contacto com a mãe para que possam estabelecer uma relação de apego segura com esta. Uma mãe que confia no seu filho sabe que se ele chora porque precisa de colo, ela deve dar-lhe esse colo. E assim ensina ao seu filho que as suas necessidades importam e que está disponível para atendê-las e ensina também ao seu filho algo que fará uma diferença fundamental em todo o seu futuro: ensina-o a confiar em si mesmo, ensina-o que quando precisa de algo pode demonstrá-lo e que as suas necessidades são válidas e importantes. Quando esta criança crescer e for ela mesma pai ou mãe, será com certeza alguém que confiará muito mais nos seus filhos, porque só podemos confiar nos outros quando aprendemos a confiar em nós.
Em relação à natureza das crianças, que muitas pessoas entendem, que é algo que tem de ser domado, ou controlado também há muitos exemplos que nos mostram que, mais do que alguém que as controle, as crianças precisam é de ser amadas, respeitadas e reconhecidas. Os adolescentes ou mesmo adultos com mais problemas de comportamento e mais dificuldades no relacionamento com os outros ou com a sua inserção social são justamente aqueles que não tiveram oportunidade de estabelecer relações de apego seguras com os seus pais. O psiquiatra Bruce Terry, autor do livro “The Boy who Was raised as a Dog” conta neste livro algumas histórias impressionantes de casos que testemunhou de pessoas que eram criadas sem a possibilidade de estabelecer esses laços e de todas as consequências devastadoras que isto tinha no seu futuro. Um dos casos descritos nesse livro é o de um adolescente que matou duas raparigas a sangue frio. Bruce Terry descreve este adolescente como uma pessoa fria e que não apresentava nenhum tipo de remorsos por aquilo que tinha feito. Este psiquiatra falou com os pais e com o irmão do adolescente que se mostravam em choque com o que ele tinha feito e pareciam pessoas perfeitamente normais, carinhosas, trabalhadoras, bem inseridas na sociedade e que nunca tinham inflingido nenhum tipo de maus tratos aos filhos. O irmão mais velho também parecia uma pessoa bem integrada e sensível e estava também em choque com o acto do irmão que não conseguia compreender. Falando com esta família os pais diziam que este filho sempre tinha sido diferente do mais velho e que sempre tinha tido problemas de comportamento na escola, que não percebiam de onde vinham e que por mais que o castigassem e repreendessem ele parecia totalmente imune a estas repreensões. Começavam a acreditar que o filho era simplesmente mau que, por algum motivo, tinha nascido diferente. E, nos primeiros tempos em que falou com estes pais, genuinamente preocupadas e chocados com que o que tinha acontecido, Bruce Terry também não encontrava grandes justificações para o sucedido. Mas, com a continuação da conversa, começou a perceber o que tinha acontecido. A mãe (que ele diz que deveria ter um ligeiro atraso mental) e o pai destes dois rapazes viviam numa cidade junto da família alargada que lhe dava muito apoio na criação dos dois filhos. Mas, quando o mais novo não tinha ainda um mês, precisaram de mudar de cidade para um sítio onde não conheciam ninguém. Nesta nova cidade, o pai trabalhava umas doze horas por dia e a mãe ficava com os dois filhos, sozinha todo o dia, sem ter ninguém que a apoiasse. Começou a criar o hábito de ir com o filho mais velho passear para um parque, deixando o mais pequeno, bebé de poucas semanas, sozinho em casa. Voltava apenas o tempo suficiente para lhe dar biberão e saía novamente deixando-o sozinho durante a maior parte do dia e isto manteve-se durante uma boa parte da sua infância. Então este foi um rapaz que não aprendeu a obter nenhum tipo de conforto dos relacionamentos humanos. Foi uma criança que nunca teve oportunidade de aprender a ver os outros como uma fonte de conforto e bem-estar e, por isso, mesmo os castigos e as repreensões dos pais não o afectavam nada porque para ele estes eram apenas um meio para atingir um fim que, neste caso, seria a comida, a casa, o conforto material. As outras pessoas eram apenas meros objectos para a sua gratificação pessoal e, por isso, quando não conseguiu obter essa gratificação das duas raparigas e, uma vez que já tinha bebido algum alcoól que contribuiu para desinibição dos impulsos, não hesitou em matá-las. 
Esta história, apesar de um pouco extrema, mostra, tal como muitas outras que o autor conta neste livro impressionante,  como os comportamentos que tantas vezes os pais querem resolver com a imposição da disciplina não são mais que apenas falta de amor, de segurança e de confiança que a criança sente e que expressa, por vezes, com alguns comportamentos mais inconvenientes. Tal como o autor defende, depois de ter contactado com muitas crianças e adolescentes que passaram por situações extremas, não existe ninguém que nasça mau, mas existem muitas crianças que nascem em situações que não permitem aplicar as suas competências relacionais e que, para não serem constantemente magoadas, não têm outra solução senão criarem defesas que as afastam das outras pessoas e que limitam a sua capacidade de sentir empatia: uma emoção essencial para vivermos em harmonia na sociedade.
Isto não quer dizer que não tenhamos que impor alguns limites, de vez em quando e que não seja importante fazê-lo. Acredito que, o nosso papel enquanto pais é o de orientar e apontar alguns caminhos mas, esta orientação é muito diferente de uma imposição. Alguém que orienta é simplesmente alguém que está um pouco mais à frente no caminho a percorrer e que pode mostrar mais facilmente o caminho mas isso não significa que a criança não deva ter liberdade de escolher o seu próprio caminho sempre que for necessário. É preciso não confundirmos o estabelecimento de limites com o a imposição de regras e de normas que se sobrepoem à confiança que devemos ter nos nossos filhos. Por exemplo, muitas crianças pequenas passam pela fase de bater quando estão frustradas ou zangadas, podem bater nos pais, ou nos irmãos mais novos, por exemplo. Geralmente as crianças batem nas pessoas com têm uma relação, não é muito natural que o façam com pessoas que não conhecem o suficiente ou quem não tenham ainda estabelecido uma relação de confiança. Esta fase costuma acontecer por volta dos 12, 18 meses, em que a criança ainda não consegue falar para explicar as suas frustrações que acabam por ser frequentes uma vez que está em plena fase de descobertas – descoberta do mundo, do espaço, do próprio corpo, visto que começa a controlá-lo muito melhor – e essas descobertas muitas vezes chocam com comportamentos ou acções que os pais não aprovam. O que acontece nesta altura é que, muitos pais vêem neste comportamento os indícios de que a natureza selvagem da criança está a tomar conta dela e precisa de ser controlada e, imediatamente, iniciam uma luta, uma cruzada contra aquele comportamento que não costuma ter grande resultado e, muitas vezes, só piora a situação. Então é aqui que entra a questão da confiança, um pai ou mãe que confiem no seu filho não veêm este gesto como uma expressão da sua maldade ou da sua má natureza mas sim como uma incapacidade de se expressarem de outra forma, e como uma fase que há-de passar. Claro que isto não significa que se adopte uma atitude passiva e se espera simplesmente que passe. Mas significa que não vale a pena entrar em luta com a criança, significa que podemos simplesmente expressar o nosso desagrado com aquele comportamento mas sem julgar a criança, sem lhe transmitirmos a ideia de que ela precisa urgentemente de ser controlada e educada para se tornar uma pessoa aceite e digna do nosso amor. É muito importante que a criança não se sinta envergonhada por ter tido aquele comportamento. É fundamental que a criança perceba que os pais podem não gostar que ela lhes bata, ou a outras pessoas, mas que isto não afeta a forma como a veêm nem o que sentem por si. Uma criança a quem os pais ralham porque bateu em alguém e com quem os pais se zangam, fica a sentir-se envergonhada com o seu comportamento. A vergonha é das emoções mais nocivas que se podem sentir e, ao contrário do que se pensa, não leva a que nenhum comportamento seja corrigido. Antes pelo contrário, o sentimento de vergonha desperta sensações fisiológicas muito parecidas com as do medo, ou da ansiedade mas com uma diferença importante: a criança sente-se totalmente incapaz de lidar melhor com a situação. Uma pessoa que tem medo, ou se sente ansiosa, ainda pode procurar encontrar formas alternativas de lidar com a situação mas a vergonha paralisa. Quando uma criança sente vergonha sente que não é digna de estar no mundo, que não é digna do amor dos seus pais e isto é algo tão difícil de enfrentar que só lhe resta tentar anular essa sensação. E esse anulamento só se consegue à custa de um endurecimento, a criança precisa de construir uma espécie de carapaça emocional, uma armadura que a protega desses ataques, que a impeça de sentir essa dor de não se saber amada, aceite e reconhecida.
Todos nascemos com uma necessidade fundamental de sermos amados, reconhecidos e aceites. Porque nascemos tão dependentes dos outros para a nossa sobrevivência, nascemos também programados para estabelecer laços e criar relações. As relações de apego que estabelecemos desde as primeiras horas de vida são essenciais para o crescimento e para a saúde mental de todos nós  e se algum comportamento dos nossos pais nos mostra que essas relações podem estar em perigo, o sofrimento é tão grande que a criança não consegue aguentá-lo e, por isso, precisa de se proteger tentando desligar-se dessa relação o que quer dizer que terá cada vez menos vontade de fazer o que lhe pedimos, porque a única coisa que pode motivar uma criança a fazer o que lhe pedem é justamente essa relação de apego e de amor com os seus pais.
O facto de não confiarmos nos nossos filhos faz com que, de algum modo, lhes transmitamos a mensagem de que eles próprios também não podem confiar em si mesmos. Faz com que cresçam com a sensação de que há algo terrível em si que precisa de ser escondido, ou controlado.
Confiar numa criança é confiar na sua natureza e dar-lhe tempo e espaço para que possa exprimir-se. Muitas vezes pensamos que precisamos de ensinar os nossos filhos a comer, a dormir, a andar, a falar mas, a verdade, é que as crianças já vêm programadas para fazer tudo isto. Só precisamos de lhes dar espaço para que manifestem a vontade de o fazerem no seu devido tempo, cada uma no ritmo que for  mais certo para si. A confiança é um dos aspectos mais importantes na nossa relação com os filhos e, quando confiamos tudo se torna mais fácil, porque quando confiamos podemos descansar, não precisamos de lutar contra a natureza da criança e ela não precisa de lutar connosco. E quando abandonamos a luta tudo se torna mais fácil e sobra muito mais espaço para podermos aproveitar a maravilha e o enorme privilégio de vermos os nossos filhos crescer. 

sábado, 28 de setembro de 2013

Lidar com a Zanga das crianças


            A Zanga nos adultos

            Uma das tarefas que costuma ser mais desafiadora para a maioria dos pais é a de lidar com a zanga dos seus filhos. Não é fácil aprendermos a lidar com esta emoção - que é tão saudável e imprescindível como qualquer outra – nos nossos filhos porque, a maioria das vezes, também não sabemos como lidar com ela em nós mesmos.
            A zanga é uma emoção que desperta muitas reacções fisiológicas. Quando nos zangamos despoletamos a chamada resposta de Luta ou Fuga, uma reacção fisiológica que prepara o organismo para lidar com uma potencial ameaça que pode ser real ou simplesmente imaginada. (Ler artigo para saber mais sobre esta resposta) Porque o nosso organismo não distingue entre as ameaças reais à nossa integridade física, e aquelas que são apenas imaginadas despoleta-se a mesma reacção em ambos os casos.
            A zanga pode despertar sensações muito fortes em nós e, porque nem sempre gostamos dessas sensações, acabamos por não querer lidar com esta emoção. Existem estudos que mostram que tanto a repressão da zanga como a sua expressão descontrolada podem ser igualmente prejudiciais à saúde e quando recorremos com frequência a estes mecanismo podemos acabar por ter uma maior tendência para desenvolver algumas doenças crónicas.
Durante algum tempo foram populares algumas correntes terapêuticas que defendiam que a forma mais saudável de expressar a zanga era deixá-la sair livremente. Nestas sessões os clientes eram mesmo incentivados a dar pontapés e murros em almofadas como forma de ventilarem a sua zanga porque se acreditava que esta emoção funcionava como uma espécie de panela de pressão que, quando não se destapava, criava uma pressão cada vez maior até explodir e, o facto dessa pressão se ir acumulando, prejudicava gravemente a saúde. Hoje em dia, há estudos que mostram que realmente reprimir a zanga pode ter consequências graves na saúde de quem o faz mas também se sabe que o facto de a expressarmos desta forma intensa e quase descontrolada tem exactamente os mesmos efeitos. Isto acontece porque uma expressão expressão violenta e intempestiva da zanga faz com que acabemos por nos sentir mais zangados. Na verdade, este tipo de comportamento explosivo, é também ele uma fuga das verdadeiras sensações que a zanga provoca porque enquanto a pessoa está a dar murros na mesa ou pontapés na porta ou a gritar com quem está á sua frente, não está voltada para si, para o seu corpo, para as sensações e emoções que ocorrem dentro de si. Então, tal como as pessoas que reprimem a zanga porque não são capazes de enfrentar as emoções e sensações que esta desperta as pessoas que explodem e que a expressam com gritos e murros também estão simplesmente a voltar toda a sua atenção para o exterior para não terem de entrar verdadeiramente em contacto com o seu corpo e com as suas emoções. Porque não são capazes de lidar com o que estas lhes transmitem sobre si mesmas.

            É muito importante sabermos reconhecer a nossa zanga porque ela dá-nos informações importantes acerca de nós e de como nos sentimos na vida. Um dos benefícios da zanga é a sensação de poder que ela nos pode dar, a sensação de que somos capazes de enfrentar os desafios e de que temos força para enfrentar as ameaças. Mas, para beneficiarmos deste poder é necessário que, em primeiro lugar, sejamos capazes de reconhecer a zanga e as sensações que esta desperta.
 Gabor Maté, um médico que escreveu o livro When the Body Says No, defende que muitas doenças crónicas têm a sua origem justamente no facto de não sermos capazes de identificar as nossas emoções, nomeadamente a zanga. Segundo este médico, Para além da sensação de poder a zanga também nos dá algumas informações importantes: mostra-nos, por exemplo, que determinada situação pode ser prejudicial para nós e, se não a escutarmos, acabaremos por não ser capazes de nos defender e de sair dessa situação; se isto se prolongar muito no tempo, o nosso organismo acabará por sofrer as consequências. Uma vez que todas as nossas emoções despertam determinadas reacções fisiológicas, Gabor Maté diz que, o nosso corpo nos vai dando pequenos sinais através das sensações que vão surgindo, nas várias situações porque passamos. Quando não escutamos os sinais que o corpo nos dá, então ele precisa de arranjar sinais cada vez maiores e mais difíceis de ignorar e assim surgem muitas vezes doenças crónicas e graves que nos obrigam finalmente a parar e a ouvir o corpo, se quisermos ser capazes de as ultrapassar.
            Marshal Rosenberg, psicólogo que desenvolveu e divulga a Comunicação Não Violenta, explica que a zanga é sempre uma expressão trágica de uma necessidade. Isto quer dizer que, sempre nos zangamos fazêmo-lo porque alguma necessidade nossa não está a ser preenchida. Então é essencial entrarmos em contacto com essa necessidade e percebermos de que forma poderemos honrá-la e respeitá-la. Mas isto implica um grau de abertura e de confiança no nosso corpo e na nossa experiência que nem sempre conseguimos ter justamente porque, a maior parte das vezes, não fomos ensinados a fazê-lo enquanto éramos crianças e estávamos a aprender a lidar com o mundo e com as emoções.

 
A Zanga nos nossos filhos                                                                                    

            Quando vemos uma criança zangada a maioria dos pais o que tenta fazer é simplesmente ignorar ou distrair a criança daquilo que ela está a sentir e, infelizmente, não são muito frequentes as vezes que vemos um pai ou mãe a valorizar a zanga do seu filho e dar-lhe espaço e tempo para a expressar da melhor forma possível.

Quando comecei este artigo pensava em escrever sobre as birras das  crianças de que tanto se fala e que tanto preocupam os pais. Depois percebi que não gosto da palavra birra mas ainda não tinha pensado porquê. Porque birra implica algo de negativo por parte de quem a faz, dizer que alguém faz uma birra é não lhe reconhecer o direito de estar zangado, ou frustrado ou triste. Quando dizemos que um adulto fez birra fazêmo-lo sempre com um sentido pejorativo referindo-nos a um comportamento que não nos pareceu adequado. Quando dizemos que um adulto fez uma birra está implícita a mensagem de que aquela pessoa não soube lidar com a situação e com as emoções que esta lhe provocou. Então porque é que dizemos que as crianças fazem birra quando estão apenas zangadas, cansadas, frustradas ou tristes? Nunca gostei de dizer que o meu filho fazia birras porque sempre senti que ao fazê-lo estava, de certo modo, a negar-lhe o direito de estar zangado, chateado, frustrado, etc. A verdade é que temos alguma dificuldade em reconhecer que as crianças podem ter estes sentimentos e acabamos por ter alguma necessidade de os desvalorizar dizendo simplesmente que fizeram uma birra, palavra que desvaloriza totalmente as emoções que estão por trás daquele comportamento espalhafatoso e explosivo que as crianças tantas vezes apresentam. E depois preocupamo-nos com estratégias para minimizar ao máximo a ocorrência desse comportamento. Queremos perceber qual é a melhor forma de o eliminar, de fazer com que nunca mais aconteça e qual é a melhor forma de fazer com dure o mínimo de tempo possível sempre que acontecer. Porque, mais do que prejudicar a criança, este tipo de comportamento prejudica a nossa imagem de adultos responsáveis, racionais, pais capazes e competentes que mantém tudo sobre controlo e que têm filhos que lhes obedecem na perfeição. E também porque, acima de tudo, ver este tipo de emoção nos nossos filhos desperta em nós muitas sensações difíceis e desconfortáveis com as quais não sabemos o que fazer e como lidar.

            Uma criança pequena ainda não tem grande capacidade de processar as suas emoções. Durante os primeiros dois anos de vida o hemisfério cerebral mais activo e desenvolvido é o direito, que está mais ligado ás emoções e às sensações corporais. Isto quer dizer que, pelo menos até aos dois anos, as crianças vivem as emoções em cru, ou seja, não têm a capacidade de as racionalizar, sentem-nas e vivem-nas no imediato e sem qualquer tipo de filtro que possa minimizar a sua intensidade. Só a partir dos três anos, com o desenvolvimento da linguagem, é que o hemisfério esquerdo passa a ter um maior papel na vida da criança, tornando-a capaz de começar a racionalizar as suas emoções. Com o tempo, se este hemisfério passar a ser predominante, é até bem possível que passe a existir um distanciamento tão grande das emoções e do corpo que se torna muito difícil voltarmos a entrar em contacto com ele. Mas, isto não não acontece de um dia para o outro e só é verdadeiramente possível na idade adulta ou no final da adolescência altura em que as nossas ligações neuronais se começam a tornar mais estáveis e difíceis de modificar.

            Os dois anos – o descobrir do mundo e das emoções

            Os ingleses usam muitas vezes a expressão terrible twos para se referirem à idade dos dois anos porque é muitas vezes nesta idade que começam os maiores desafios. Porque nesta idade a criança já tem mobilidade suficiente para mexer em tudo o que a rodeia, já se habituou a ter algum poder de acção sobre o seu meio ambiente, já percebeu que é capaz de fazer muitas coisas que antes não podia fazer e também já teve algum tempo para desenvolver algumas preferências sobre o que quer fazer, que nem sempre correspodem às preferências dos pais ou dos adultos que as rodeiam. E, porque nesta idade a criança ainda vive com as suas emoções muito à flor da pele e porque ainda não tem um domínio da linguagem que lhe permita expressar facilmente as suas necessidades e frustrações, acaba por ser uma idade em que é muito fácil que surjam episódios explosivos e comportamentos mais difíceis de controlar por parte dos pais.

        Formas de lidar com a Zanga das crianças 

            Então, quando os nossos filhos se zangam, é fundamental percebermos que necessidades é que, naquele momento, não estão a ser preenchidas. Aqui é importante sabermos distinguir necessidades de vontades. Por exemplo, o facto da criança se zangar porque naquele momento tinha vontade de ver mais uma hora de televisão e os pais não deixaram não significa que existe uma necessidade real da criança ver televisão. Então, neste caso também é importante distinguir se a criança apenas expressa a sua frustração - o que pode fazer chorando e protestando um pouco - ou se fica realmente zangada com uma expressão muito mais intensa e intempestiva que pode incluir espernear, gritar, chorar muito, atirar objectos ou bater (principalmente em crianças mais pequenas). Neste último caso, então precisamos de perceber que essa manifestação mais intensa por parte da criança provavelmente não tem nada a haver com a televisão. A criança pode estar simplesmente a expressar uma outra necessidade, a necessidade de se sentir respeitada e aceite nas suas preferências, por exemplo, a necessidade de se sentir compreendida de e de saber que os pais conhecem os seus gostos, a necessidade de saber que os pais gostam de si e que se preocupam com o seu bem-estar. Então, neste caso, os pais não precisam de responder a essa necessidade mantendo a televisão ligada, mas precisam de mostrar à criança que compreendem e aceitam a sua frustração para que esta se sinta escutada. Isto pode ser feito de várias formas consoante a criança e o comportamento que esta manifestar. Uma criança que ainda não domina bem a linguagem tem mais probabilidade de expressar a sua zanga de uma forma física: gritando, chorando, pontapeando, batendo, esbracejando, etc. Nestes casos pode ser muito importante ter algum contacto físico com a criança, através de um abraço ou pô-la no colo. Para isto é importante que o adulto se mantenha calmo e não veja aquela expressão como um ataque a si ou à sua autoridade. Por vezes a criança não está pronta para ser abraçada ou posta no colo durante os primeiros instantes em que a sua explosão dura, então podemos simplesmente esperar e ficar por perto, demonstrando claramente que estamos disponíveis para quando a criança quiser ser consolada. Nestes casos também não adianta muito tentarmos falar com a criança nos momentos em que ela está mais descontrolada. Podemos deixá-la expressar-se um pouco – desde que não haja perigo de se magoar a si ou a outros é claro – e depois então, quando estiver mais calma, depois de um primeiro contacto físico, podemos expressar o nosso reconhecimento da sua necessidade dizendo qualquer coisa como: eu sei que querias muito ver mais desenhos animados, ou eu compreendo que para ti neste momento era muito importante ficar a ver mais televisão, mas a mãe ou o pai acham que agora é mais importante ires brincar. Podemos também focar-nos no sentimento, eu sei que estás muito zangada, ou eu sei que ficaste muito chateada porque querias ver mais televisão mas a mãe acha que agora é importante fazeres outra coisa. O simples facto da criança sentir que os pais a compreendem e percebem é suficiente para que a necessidade de se sentir aceite e compreendida seja satisfeita e é, geralmente, também suficiente para acabar com a zanga.
            Depois do comportamento explosivo terminar e quando virmos que a criança está realmente calma esta estará numa fase mais receptiva, isto quer dizer que pode ser altura de falarmos da forma como se comportou e de lhe dizermos de que é que não gostámos, se nos parecer necessário. Com uma criança mais velha que disse algumas coisas que não gostámos de ouvir, ou com uma criança pequena que bateu e atirou com coisas, por exemplo, podemos dizer que, apesar de compreendermos a sua zanga e de sabermos que tem todo o direito a expressá-la não gostamos que o faça daquela forma.

            Isto é tão mais fácil de fazer quanto melhor seja a ligação do adulto com a criança. Se a criança sente que costuma ser respeitada e aceite irá muito mais rapidamente deixar-se consolar e aceitará muito mais facilmente as nossas críticas em relação ao seu comportamento e rapidamente estará pronta para começar a fazer outra coisa.
             Se for muito difícil consolar a criança, ou se a sua fúria demora muito tempo a passar, se a criança grita, chora, esperneia por um período muito longo e se sentimos que se torna muito difícil fazer com que a criança deixe aquele comportamento ou largue a sua zanga então é preciso percebermos que este é um sinal de que alguma coisa não está bem com a criança ou na sua relação com os pais. Por vezes acontece simplesmente que a criança está cansada ou tem alguma necessidade biológica que não foi satisfeita: sono, fome, sede. Algumas crianças ficam mais facilmente susceptíveis a estes episódios quando têm fome, outras é o sono que as torna mais facilmente explosivas. Para outras crianças basta uma mudança na rotina para se tornarem mais rabugentas e susceptíveis. É importante estarmos atentos a estes sinais e conhecermos os nossos filhos, principalmente com as crianças mais pequenas que ainda não são capazes de dizer que têm sono, fome ou frio, por exemplo.
            Mas, noutros casos o que pode estar em causa é mesmo o tipo de ligação que a criança tem com os pais. Uma criança que se sente amada, respeitada, escutada e acolhida em todas as suas facetas é muito mais facilmente capaz de lidar com as suas emoções e frustrações sem ficar num estado demasiado descontrolado. Uma criança que chora ou protesta por tudo e por nada durante demasiado tempo e que ninguém consegue consolar é uma criança que está a precisar desesperadamente se se sentir amada, protegida, segura. É uma criança que precisa de se sentir ligada aos seus pais, precisa de se sentir aceite e protegida.

            Muitas vezes defende-se que a melhor forma de lidar com as birras é ignorá-las porque se não o fizermos estaremos a reforçar esse comportamento. Mas uma criança que chora e protesta está a expressar-se da melhor forma que sabe. Se não gostamos da forma como está a fazê-lo é o nosso papel, enquanto pais, mostrar-lhe formas alternativas de lidar com as suas emoções mas nunca ignorá-las. Porque uma criança que faz aquilo a que chamamos birra é uma criança que sofre, é uma criança que está a demonstrar que algo não está bem consigo, que alguma coisa a incomodou, que alguma coisa a fez sentir-se mal e a única forma saudável de lidarmos com essa emoção é reconhecê-la, aceitá-la e dar espaço à criança para que a possa integrar. Não ignoramos os nossos maridos ou mulheres quando se zangam e, se o fizermos, sabemos que só iremos piorar as coisas, então como somos sequer capazes de pensar em fazê-lo com os nossos filhos? !
As crianças não têm capacidade de regular as suas próprias emoções e só vão aprender a fazê-lo através dos adultos: uma criança que chora, aflita com qualquer coisa e a quem os pais pegam ao colo e fazem sentir que está tudo bem, aprende que pode passar daquele estado de tristeza e de aflição para um estado de calma e de tranquilidade. Com muitas repetições deste género começam a cimentar-se no seu cérebro as ligações que lhe permitem ir passando de um estado a outro. Mas, se ninguém a ajudar lidar com as suas emoções, especialmente quando estas são demasiado intensas, a única saída que lhe resta é tentar ignorá-las. E assim, à medida que vai crescendo, vai acabando por se afastar cada vez mais do que sente, do seu corpo e de si mesma. E, quando esta criança crescer e se tornar pai ou mãe terá com certeza dificuldade em lidar com as emoções dos seus filhos que assim também não terão oportunidade de aprender como fazê-lo perpetuando este ciclo que alguém precisa de ter coragem de quebrar.
O outro extremo do comportamento é quando cedemos imediatamente ao que a criança quer para evitarmos a sua expressão de zanga mas esta é igualmente prejudicial porque, mais uma vez, não estamos a permitir-lhe lidar com as suas emoções, com a sua frustração. Estamos a transmitir-lhe a mensagem de que aqueles sentimentos são tão prejudiciais e perigosos que faremos qualquer coisa para não lidar com eles. E, desta forma, a criança vai aprender a ter medo do que sente e também nunca terá oportunidade para aprender a lidar de modo saudável com estas emoções.

Por isso para criarmos adultos saudáveis e equilibrados precisamos de – nós, enquanto pais – não termos medo de reconhecer e de aceitar as nossas próprias emoções. Precisamos de não ter medo de ser vistos como maus pais porque o nosso filho grita ou chora no meio da rua quando queremos que se venha embora do parque, precisamos de aceitar que não podemos controlar tudo, de não ter medo de deixar os nossos filhos expressarem as suas emoções. Mas, para isso, em primeiro lugar, precisamos de ter coragem de enfrentar os nossos medos, as nossas zangas e todas as emoções que sentimos com toda a intensidade que só um filho pode despertar nos seus pais. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Amamentação - Alimentar com Amor


Ultimamente tenho lido alguns textos de pessoas que dizem que não amamentaram por opção, ou que o fizeram muito pouco tempo por outros constrangimentos e que se sentem muito criticadas e incompreendidas na sua escolha.  Por um lado, é verdade que, enquanto sociedade, cada vez estamos mais conscientes dos benefícios da amamentação, por outro também tenho a certeza de que são as mães que dão de mamar por mais tempo (até os filhos terem, 2, 3, 4 ou 6 anos) que são as mais criticadas e não aquelas que apenas dão de mamar durante pouco tempo uma vez que estas ainda são a maioria, como as estatísticas mostram. Na verdade quando o meu filho tinha apenas 7 ou 8  meses já havia muitas pessoas espantadas por saberem que ainda mamava. Penso que, apesar de estarmos cada vez mais conscientes dos benefícios da amamentação nos bebés ainda precisamos de consciencializar muito mais as pessoas para a importância de manter este vínculo e esta forma de alimentação durante os primeiros anos de vida das crianças.

Nestes textos estas mães diziam que tinham o direito de escolher não amamentar (fosse por não quererem mesmo ou porque tinham tido uma má experiência nos primeiros tempos) e que a sociedade não lhes reconhecia esse direito. Na verdade, tal como o vejo, não se trata de uma questão de direitos. Se assim fosse o bebé também teria o direito de receber esse alimento único, essencial e insubstituível (por muito que as companhias de leite artificial nos queiram fazer pensar o contrário) pelo menos durante o seu primeiro ano de vida, se não durante os primeiros dois ou até decidir que não o quer mais. E, neste caso, de quem são os direitos mais importantes? Da mãe, adulta e racional que pode fazer as suas escolhas, ou do bebé, pequeno, indefeso e totalmente dependente dos adultos para tudo aquilo de que necessita para sobreviver. Para além da importância fundamental do leite materno para nutrir o bebé do ponto de vista físico e para a formação do seu sistema imunitário o bebé também tem o direito de ter o contacto íntimo, próximo e tão importante que a amamentação pode proporcionar. Os bebés alimentados a biberão não serão menos amados é verdade mas também não têm a experiência insubstituível de sentirem a sua pele contra a pele da mãe enquanto se alimentam, de sentir os batimentos do seu coração, de tocarem na sua pele de receberem um alimento fabricado especialmente para si com todo o amor e carinho que, juntamente com os nutrientes, transmite hormonas que são segregadas pela mãe e acabam por fluir no leite, mesmo que em quantidades mínimas mas suficientes para terem algum efeito na fisiologia do bebé. Porque o amor da mãe, ao sentir-se em contacto com o filho, provoca um aumento de oxitocina e de endorfinas que o bebé acaba por receber também através do leite - estas são hormonas responsáveis por uma sensação de bem-estar, de tranquilidade, se amor e de prazer. Será que os bebés que são alimentados a biberão não têm o direito de receber também o amor das suas mães desta forma? Será que os fabricantes de leite artificial conseguem sintetizar o amor nas suas fórmulas científícas?

            Mas, na verdade, esta não é mesmo uma questão de direitos: porque se o fosse os do bebé teriam, inquestionavelmente, de se sobrepor aos da mãe. Trata-se de nos perguntarmos porque é que um animal mamífero – que é o que somos – se negaria a fazer algo que faz parte do comportamento natural e instintivo para a sua espécie. Se tivéssemos uma gata ou cadela – animais que vivem connosco e que podemos observar de perto mais facilmente – que tivesse acabado de ter uma ninhada e se recusasse a dar-lhes de mamar não iríamos pensar que aquela mãe teria esse direito e estava a fazer uma escolha mas ficaríamos preocupados por não apresentar um comportamento tão esperado, natural e essencial para a sobrevivência das suas crias. Tentaríamos perceber o que é que poderia tê-la levado a ter esse comportamento e o que é que se passaria de errado na sua cabeça para não seguir o instinto.

Pois é isso que penso quando alguém me diz que não quis dar de mamar, ou que optou por deixar de o fazer muito cedo quando ainda tinha leite: o que se terá passado com aquela mãe, mulher, mamífera para não querer alimentar a sua cria da forma mais saudável, natural e instintiva? Penso que poderão existir vários motivos para que tal aconteça. No caso das mães que deram durante algum tempo e pararam por terem surgido complicações muitas vezes são a pressão social, a falta de apoio e de confiança no próprio corpo e no seu leite que as fazem parar. Porque na verdade ainda fazemos parte de uma geração em que muitas de nós não chegaram a ser amamentadas, porque houve um tempo em que o marketing das companhias de leite artificial foi tão forte e em que os médicos estavam tão deslumbrados com a ciência que julgavam que podia fabricar um alimento ainda mais perfeito que o natural que muitas mulheres foram encorajadas a alimentar os filhos com leite em pó à mais pequena contrariedade. E hoje em dia, ainda há muitas mães que são encorajadas a fazê-lo assim que amamentar se torna mais difícil: ou por causa de mamilos doridos e gretados ou por causa de mastites, ou porque os filhos choram muito. Tenho ouvido muitas mães dizerem que tiveram muita pena de terem que parar de amamentar ou porque pensavam que o leite delas já não chegava ou porque tiveram alguma complicação de saúde.

O mito do leite fraco é talvez dos mais nocivos e um dos que mais leva as pessoas a darem biberão. É um mito porque não existe tal coisa, o nosso corpo na sua sabedoria vai buscar todos os nutrientes para fazer o melhor alimento que o bebé pode receber. Mesmo no caso de mães doentes ou mal nutridas o seu corpo continua a ser capaz de produzir um leite de muito melhor qualidade do que qualquer fórmula artificial. Um dos efeitos importantes do leite materno que nenhum leite artificial consegue imitar é o reforço do sistema imunitário dos bebés que está em formação e muito incompleto durante os primeiros dois anos de vida: tem sido observado e comprovado que os bebés que mamam adoecem menos e recuperam muito mais depressa do que os que não o fazem porque recebem no leite os anticorpos produzidos pelo sistema imunitário das mães.

As complicações de saúde porque muitas mães passam também podem levá-las a desistir e a quererem acreditar que o leite artificial é tão bom como o seu. Conheço mães que deixaram de amamentar, aconselhadas pelos médicos, por terem tido mastites quando este é um problema que se resolve e que pode perfeitamente ser ultrapassado sendo que o facto do bebé mamar até pode ajudar a resolvê-lo, visto que o leite tem mesmo que ser esvaziado e o bebé consegue fazê-lo de forma mais eficiente que qualquer bomba do mercado.

Mas, se é triste o facto de muitas mães quererem amamentar e não serem capazes de o fazer por muito tempo devido à falta de apoios ou aos maus conselhos dos profissionais de saúde, parece-me ainda mais triste o facto de algumas mães dizerem que não amamentaram mais porque não quiseram, pura e simplesmente.

A amamentação não tem que ser um mar de rosas para toda a gente. Se muitas mães dizem que adoram amamentar e que este é um momento muito especial e belo para si, também há outras que o vêem apenas como algo que fazem porque querem o melhor para os seus filhos. E, tanto um como outro, são comportamentos naturais. O que não é natural é alguém não querer ter um comportamento que sempre foi essencial para a sobrevivência da espécie – sim, porque um bebé que não mamasse, até há algumas décadas atrás, era um bebé que teria muito menos probabilidades de sobreviver - e instintivo. A vida actual muitas vezes distancia-nos do nosso corpo. Vivemos muitas vezes num plano demasiado racional e esquecemos-nos de ouvir os instintos, de sentir o corpo. Amamentar um bebé traz-nos de volta ao corpo. Sentirmos o nosso bebé em contacto com o nosso corpo, a alimentar-se de uma forma tão íntima de um alimento que é produzido por nós, pode despertar emoções muito poderosas. E, a verdade é que essas emoções  - para alguém que vive desligado do seu corpo – podem ser assustadoras de tão intensas que se tornam. Porque as emoções são sempre vividas e sentidas no corpo, então a amamentação chama-nos à terra, ao corpo, às emoções e, por vezes, temos medo de o fazer. A gravidez e a maternidade, sobretudo nos primeiros tempos, são períodos muito emocionais em que nos lembramos que além de sermos pessoas também somos animais, em que sentimos a força da natureza em nós e amamentar lembra-nos disso.

Por estarmos mais em contacto com o corpo e com as emoções de uma forma mais pura e profunda também ficamos mais vulneráveis: esta é uma altura em que, por vezes, vêm ao de cima muitos medos antigos, muitas feridas mal curadas. É uma altura em que podem surgir até recordações de infância que nem sabíamos que tínhamos e, se houver feridas por sarar no nosso passado, esta é uma altura em que é mais provável que venham ao de cima. Fazemos parte de uma geração em que muitas de nós não foram amamentadas, por muito bem intencionadas que tenham sido as nossas mães ao fazê-lo e por muito boas mães que tenham sido é natural que isto tenha deixado em nós algumas feridas, alguns pontos dolorosos do nosso passado. E, mesmo que nos tenham dado de mamar e que tenhamos tido pais bem intencionados é muito possível e provável que haja algumas feridas que nunca foram curadas e que ficaram guardadas sem nos darmos conta. E é natural que não nos apeteça tocar nelas, sobretudo quando – através de um racionalismo excessivo – as conseguimos manter à distância toda a nossa vida.

Mas, a verdade é que seremos melhores mães quanto mais disponibilidade tivermos para olhar para essas feridas. Enquanto não formos capazes de as aceitar e de as integrar no nosso presente não poderemos resolver o passado e, enquanto não o fizermos não poderemos estar totalmente em contato com os nossos sentimentos. E, desta forma, não poderemos também estar plenamente em contato com os dos nossos filhos. Os bebés quando nascem só conseguem relacionar-se um ponto de vista emocional. Durante o primeiro ano de vida é sobretudo o lado direito do cérebro – ligado ao processmamento das emoções e ao comportamento não verbal – que está activo e em desenvolvimento. Isto significa que os bebés só sabem relacionar-se com o mundo através das emoções. E só podemos relacionar-nos com as emoções dos nossos filhos se aceitarmos as nossas. Amamentar é estar em contacto com o bebé, connosco e com todas as emoções que podem surgir boas ou más. Assim mais do que perder tempo com quem tem direito a quê o que é preciso perceber, reconhecer e aceitar é que, uma mãe que não quer amamentar é uma mulher que foi ferida e que não quer reconhecer e voltar a sentir essa ferida. Quando somos crianças não temos como nos defender de muitas coisas que magoam, por isso guardamos dentro de nós, bem escondido aquilo com que não somos capazes de lidar. Os nossos filhos podem ser uma forma fantástica de nos fazer voltar a entrar em contacto com essas feridas que foram guardadas e com as quais podemos mais facilmente aprender a lidar agora que somos adultas. E os nossos filhos merecem que, pelo menos, tentemos fazê-lo. Merecem que pelo menos estejamos dispostas a tentar e entrar em contacto com todas as partes de nós. Porque só se o fizermos é que podemos ter oportunidade de quebrar o ciclo e de não lhes deixar feridas que também eles terão de guardar em alguma parte de si.

Laura Sanches